O QUE SE PASSA NA CABEÇA DE UM VELHO

O QUE SE PASSA NA CABEÇA DE UM VELHO

Muitas coisas passam pela cabeça de um velho.

Não são apenas lembranças, como se pensa; estas, inclusive, quase sempre, já carregam poucas emoções. O tempo, que tudo nivela, vai devorando tudo, e quando nos damos conta, tudo passou, tudo ficou para trás, até mesmo a paixão amorosa e o ódio, estas emoções que nos assaltam de tal modo que nos sentirmos como estrangeiros em relação a nos mesmos.

Fica a memória do essencial. O resto se perde, escoimado pela síntese de todas as experiências que vão se formando na mente que cada vez mais abrange um todo e que se livra dos detalhes que compuseram uma longa existência.

É claro que há detalhes que permanecem vivos; permanecem porque têm uma significação ímpar por remeter a algo muito mais amplo que o fato em si. É o caso, por exemplo, de um determinado perfume. Quando o sentimos, mesmo muitos anos depois, logo ressalta em nossa mente a mulher que o usou, a intensidade dos momentos vividos. Na verdade, não era na mulher em quem pensávamos naquele momento, o que atuou e arrancou da memória aquelas sensações que estavam adormecidas lá no esquecimento foi o extraordinário poder de evocação que os perfumes têm.

Um outro exemplo: após um desastre as pessoas às vezes só lembram de um detalhe que nada tem a ver com ele – ter olhado pela janela do carro e visto, no alto, um bando de pássaros voando. Mais nada. Depois a escuridão. Após a recuperação, toda vez que vê um bando de pássaros no céu, a escuridão vem à mente.

Mais do que lembranças, há um olhar diferente sobre o presente. Muito mais amplo, e muito mais capaz de ver a ligação íntima que existe entre todas as coisas. E isto por uma simples razão: não está mais focado em alguns poucos pontos de grande importância estratégica para a vida que elegemos – na medida em que o fazemos, é claro - como nos momentos da juventude e da maturidade, quando se fazem as grandes opções que determinarão o futuro e o estreitamento dos caminhos das possibilidades amplas que antes existiam.

Na velhice, já se foram todas as ilusões que nos fazem sentir como se fôssemos quase imortais, tão distante nos parecia a velha senhora vestida de negro. Agora, a sentimos próxima, está ali, ao alcance da mão. E, às vezes, da vista, em rápidos vislumbres. Isto, não há dúvida, age sobre nossa visão do mundo e sobre os nossos sentimentos em relação a tudo que nos cerca. E o que antes parecia secundário, torna-se essencial, como o fato de estarmos vivos, ou o profundo afeto que nos une aos que tanto amamos. Mas, por isto mesmo também, amortece os sentimentos que nutríamos contra os nossos desafetos. A relatividade de tudo reduz a sua importância. A vida se torna quase uma constante despedida. E vive-se subjetivamente em nível mais profundo. Um aqui e agora, exigentes. O predomínio do inadiável

Mas talvez a maior diferença esteja no nível da fantasia.

Tudo aquilo que durante anos refugamos, seja por falta de tempo, seja por coerção social, vem à tona, cobrando a sua parte. O outro lado do ser aflora com uma força espantosa, que já imaginávamos ter perdido. Isto perturba profundamente aqueles que nunca entraram em contato com as áreas mais profundas e recônditas de seus seres.

Os desejos secretos se tornam para eles fantasmas que os atormentam, não só porque os desconhecem, mas antes de tudo pela forma que assumem em seus devaneios, em suas alucinações.

Sempre me impressionei com a expressão “demência precoce”. Sei que se trata de antiga nomenclatura para a misteriosa doença mental que é a esquizofrenia. Impressionava-me porque sugeria que há uma “demência” que não é precoce: a “demência” dos velhos, o estado que chamávamos de gagá, a esclerose que, de modo mais forte ou mais fraco, a todos atinge. Inclusive esta outra grande incógnita, o mal de Alzheimer, a terrível deterioração que vai pouco a pouco devastando a mente.

Lembro-me que li, não sei onde, que o ex –Presidente Reagan, em seus últimos anos, achava muito estranho que em todos lugares que passasse as pessoas o aplaudiam: não sabia mais que havia sido, por dois mandatos, Presidente dos Estados Unidos. Os aplausos o deixavam encafifado. Imaginem: ter sido Presidente da mais poderosa Nação do Mundo sem a menor consciência disto!

Acontece.

As limitações físicas, crescentes e inevitáveis, além de irritar e afetar o humor, também trazem, em seu bojo, a necessidade de auto - disciplina e o exercício da paciência consigo mesmo e com os outros. São as grandes provações da idade avançada.

Mas a par disto tudo, há o fato do velho ingressar em níveis de vivência totalmente desconhecidos para os mais novos. Minha avó levava horas por dia conversando com o marido falecido havia mais de cinqüenta anos. E ainda se dava ao trabalho, se a deixassem falar à vontade, de contar depois aos filhos e aos netos, feliz da vida, todo o teor da conversa. Não se tratava de recordações e sim de uma transposição da consciência para outro nível, fora das limitações do espaço- tempo. Teoricamente, uma forma de alucinação.

Sempre encarei o fato como algo natural naquela idade, e não uma limitação da mente provocada pela esclerose, como todos pensam. Eu sentia aquilo muito mais como algo que só aos velhos é dado, como um atributo naquela altura da vida. Um acréscimo, não uma perda.

E hoje, quando converso com tantos seres amados que já partiram, e os vejo nitidamente diante de mim, cheios de alegria e vida – principalmente uma mulher a quem muito amei e já se foi - sinto-me maravilhosamente bem, como que aquinhoado por um dom - e não um esclerosado, criando situações caóticas, confundindo nomes e pessoas, vítima de uma disfunção da mente em deterioração que embaralha lembranças e a realidade toda.

Alço a outro plano, só isto. E esta talvez seja a maior gratificação que recebo por ter vivido intensamente a vida, como continuo a fazê-lo, só que agora em outro nível.

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Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 11/10/2010
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