Leite com angu com leite
Eu pergunto: alguém já bebeu leite com angu? Ou comeu angu com leite? Um bom angu mineiro, só fubá e água, sem nenhum tempero, amarelo e consistente? Fazia tempo, muito tempo. Pois hoje de novo aconteceu. Nem tão como devia ter, mas aconteceu e valeu pela ausência sentida.
O leite. O leite branco, tão branco, a soma de todas as cores. Leite frio, mas não gelado. Só frio e já fervido. Afasta-se a nata com um leve sopro e deixa o leite escorrer da leiteira para a panela onde se fez o angu. Este é o verdadeiro angu com leite. Mal se revira o angu no prato fundo que vai dar-lhe a forma, tampado com outro prato fundo que depois de revirado, o que era de cima fica de baixo, o de baixo colocado na pia, pois logo depois de executado tais movimentos irá para o centro da mesa, amarelo e soberano como o sol para compartilhar seu sem sabor com o sabor do arroz, do feijão, do caldo de frango e de parte desse pobre coitado, bem refogado e o complemento que é o jiló refogado ou a couve mineira, pois como já escrevi, mal se revira o angu na panela e o que resta é a rapa da panela, a rapa do angu e é ali que se joga o leite tão branco e se raspa da panela as beiras e os fundos e então se assenta de preferência no degrau da porta da cozinha ou em um banco de altas pernas que essa não é uma refeição de mesa e cadeira nem de sala de jantar, mas sim de cozinha, preferencialmente aquelas que já não mais existem, com fogão a lenha e a fumaça ensombreando os olhos. Angu com leite em cozinha com fogão de lenha é luxo perdido que não se encontra mais. No entanto ainda existe o angu e o leite desminliguido e a panela onde se faz o angu e quem não tem cão caça com gato, ditado espatafúrdio, nunca vi gato caçar com o homem, caçar como cão. Mas papos estes, desviados não hão de tirar o encantamento de minha panela de angu com leite, bebido ou comido com colher de sopa, uma colherada por vez saboreando o antigamente. De preferência antes da refeição propriamente dita. Uma entrada. E o resto vem depois, que o resto é resto.
E eu aqui a pensar: não havia nada mais importante neste dia para que eu pudesse escrever? Nada mais aconteceu do que a cozinheira ter feito a mágica poção formada de fubá, água e leite? Pois houve sim muitas coisas que o dia é sempre cheio de coisas, jornais lidos com notícias umas assim outras assado, trabalho cumprido com requisições exigentes, serviços burocráticos de burocracia financeira, agendas em dia, bens que serão tombados, trens que devem ser encontrados, terapias noturnas com discussões soturnas. Um dia como outro qualquer onde a sombrinha azul que desapareceu não foi encontrada nem a chave da porta achada, pois nem se sabiam que estavam perdidas. Assuntos muitos perderam a relevância, pois só o angu com leite, comido ou bebido trouxe de volta a menina que estava encantada, perdida no tempo em que havia fogões e tições e brasa soprada e cinza avoada.