Coração Solitário
Coração Solitário: Fullgás, Deodato, Tive Sim.
• “Meu mundo você é quem faz, música, letra e dança...”. Na versão original, de Marina Lima e Antonio Cícero, Marina canta e abre o “a” de “dança” de modo simples e com um charme perdido no tempo. Essa composição exibe um dos mais puros retratos de uma verve extinta. Idem para o arranjo, livre, flutuante.
• Nos anos 40, através do clube por correspondência denominado Coração Solitário, a América cosmopolita ficou estarrecida face ao registro de uma série de baixas entre os membros do clube, todas elas causadas por um casal de psicopatas, que percebeu na carência dos outros um meio de encher os bolsos, mais ou menos na triste tradução de que a vida das vítimas valia o número exato de seu saldo bancário. Anos depois, 1951, ambos fritaram na cadeira elétrica.
• O mago Eumir nasceu no Rio de Janeiro em 22 de junho de 1943. Conhecido mundialmente por Eumir Deodato, sua competência como produtor musical e arranjador teve primeiro que deslumbrar o hemisfério norte, e bota deslumbramento nisso.
• Na madrugada de 21 de setembro de 2010, um morador de rua foi assassinado na esquina da avenida Paulista com a Teixeira da Silva. Caso de repercussão zero, pela manhã havia uma bruta poça de sangue no seu habitat e o depoimento de uma vizinha, dizendo que ele estava espetado ao raiar do dia. Nesse ponto, ninguém poderia negar-lhe a pecha de Coração Solitário. Dia 03/10 próximo, iremos às urnas. Quantos, dentre nós, mesmo residindo com comprovação, se incluem na categoria descrita acima?
• “Não nada, nada de mal, nos alcança...”. Fullgás foi lançada em 1985, salvo margem de engano de um ano para cima ou para baixo.
• Deodato saiu do Rio em fins dos 60. Em 73 ele lançou “Also Sprach Zarathustra", faixa arrasadora do seu álbum de estréia "Prelude", para a gravadora CTI, que vendeu no mínimo cinco milhões de cópias. Esse trabalho deu a Eumir seu primeiro Grammy.
• Nas capas das principais revistas amanhecidas hoje, nas bancas, os temas Tiririca e Censura despontam. Eu te pergunto: a.) Isso lhe parece uma descoberta? b.) Essas pessoas estavam dormindo?
Tentaram tutelar a imprensa em meados de 2003, ainda por cima colocaram a culpa no então Ministro da Cultura - luz de raro brilho no cenário nacional, por que não tentariam agora, se a força de Darth Vader parece sombrear os corações esperançosos, tornando-os, de súbito, ainda mais solitários?
Na periferia de Belém (PA), ontem, 24/09/10, uma modesta agremiação de brasileiros e brasileiras colocou uma faixa na via expressa dizendo, linhas gerais, “votaremos em quem nos der um teto e saneamento básico”. As câmeras mostraram duas opiniões distintas a respeito da faixa: a.) Trata-se de uma declaração infeliz b.) Trata-se de desespero.
Aproximadamente um terço de São Gonçalo (RJ), estado detentor da segunda maior economia do país, vive sem saneamento básico. Haja solidão...
• “Então venha me dizer, o que será, da minha vida, oh, sem você, noites de frio, dia não há, e um mundo estranho...”.
• Coração solitário, via de regra, entende patavina do que está acontecendo, seja ao seu redor, seja um tanto além do seu campo de visão, seja nas suas entranhas emocionais. Trata-se de uma sina. Em 1979, um cineasta incomum - Hal Ashby, dirigiu “Muito Além do Jardim” (Being There), com Peter Sellers no papel principal. A música de Deodato está presente, sem exagero pode-se dizer que é a alma do filme e o personagem de Sellers o ícone desse solitário, com parca compreensão do emaranhado das coisas e se guiando unicamente pelo que assiste nos programas de TV. Muito parecido com o eleitorado em geral, cujas atitudes relatadas na mídia só expressam a arte do desencontro. Noutras palavras, pura solidão.
• Eumir trabalhou em mais de 500 discos para um leque formidável de artistas e bandas. Suas parcerias passam por Frank Sinatra e Vinícius de Moraes, George Benson, Lee Ritenour, Sarah Vaughan, Milton Nascimento, Marcos Valle, Elis Regina, Antonio Carlos Jobim, Wes Montgomery, Paul Desmond e Roberta Flack (Killing Me Softly...). Mais um gênio incomparável que foi à América para brilhar, Deodato era autodidata e aos17 anos organizou e conduziu sua primeira sessão de gravação para uma orquestra de 28 integrantes. A América não era exatamente uma novidade – abrigou um mundaréu de talentos brasileiros excepcionais que faziam música, arte primeira do coração solitário.
• Vamos às urnas domingo 03/10 pensando no fundo, no fundo, em cantarolar: “você me abre seus braços, e a gente faz um país”.
• Esse ano comemora-se 30 anos do passamento do expoente Cartola, que em tempos idos compôs: “Tive sim, outro amor antes de ti...”.