Os outros medos ou o Ratinho Encantado.
 
 
 
Algum tempo depois que chegamos a Lavras meus pais resolveram reformar nossa casa e nos mudamos para um casarão inesquecível. Ele ficava bem perto de nossa casa em reforma e da Padaria, na mesma direção, duas ruas paralelas a esquerda da nossa. Tinha as janelas azuis, uma pequena varanda, um jardim também pequeno , um porão, um quintal cheio de árvores e um rato.Sim, nós tínhamos um rato de estimação.
 
Durante muitas noites convivemos com sua presença. Não sei porque ninguém o escorraçou da primeira vez que o vimos, o caso é que ele veio e foi ficando. Nossa televisão ficava na imensa sala de jantar e todos nos juntávamos ali. Alguns se assentavam ao redor da mesa, outros bem em frente à televisão e ele se postava debaixo da mesa, também vendo a televisão. Era um tempo em que toda família se reunia  frente à televisão e ele passou a fazer parte dessa platéia. No princípio ele chamava tanto a atenção que a gente se dividia entre olhar para os programas e olhar para ele, mas depois tudo foi ficando tão comum que nem percebíamos mais quando ele chegava ou saia. Algum tempo depois voltamos para casa e perdemos contato com o pequeno mouse, mas ele se tornou inesquecível. Quando  estamos juntos há sempre alguém perguntando: lembram-se do ratinho que gostava de televisão?

Muitos e muitos anos depois, já vivendo na casa em que vivo hoje, assistíamos a TV, absortas, quando alguém gritou: Ei, tem um rato aí, na mesinha de canto! E tinha mesmo. Em um minuto não havia mais ninguém assentado, na verdade ninguém na sala, eu subi as escadas em um pulo só. Não me lembro quem acabou dando fim ao roedor, só sei que não fui eu e sei também que não descansaram enquanto não deram cabo dele. Rato Encantado só havia um, o resto é puro terror. Pois eu tenho que confessar: esse é um de meus maiores medos – sou ratófaba. Talvez lembrança de meus tempos de menina quando fugindo de um, tentei subir no balcão do depósito de pães e acabei escorregando estraçalhando o bichinho.  Até hoje quando penso me dá engulhos.
 
Essas historinhas todas sobre ratos são para completar as histórias de meus medos. Pois é, tenho medo de ratos, baratas e assombrações.Sei que são medos bobos, mas fazer o que? 

Sobre baratas eu não tenho muitas histórias para contar, embora o pavor seja tão grande quanto o pavor que sinto de ratos. Nunca aconteceu nada de muito dramático em nosso relacionamento, mas basta uma para impedir a minha passagem para qualquer lugar que eu queira ir ou de onde queira sair. Mas histórias de assombração eu tenho muitas, tenho tantas que não dá para contar em uma única crônica.

Preciso, porém esclarecer que não tenho medo de meus mortos. Com esses eu convivo em uma boa. Minha avó Maria, por exemplo, me visitava amiúde. Ora se assentava no sofá ao meu lado, ora na beira da minha cama. Era uma gaiata a minha avó e ria as gargalhadas quando ameaçava vir me visitar e ainda puxar as minhas pernas para provar que alma de outro mundo existia. E eu dizia, pode vir, vê lá se vou ter medo de você! Nunca puxou as minhas pernas, mas vive por aqui e eu a chamo de alma penada e ainda pergunto quando vai se reencarnar, mas nunca me respondeu. Ela só se achega e me conforta. Meu tio, o Chiquito, pouco mais velho que eu, e que se foi de repente que nem deu para acreditar, esse também esteve por muito tempo presente em minha vida e se no princípio só me deixava triste no fim começou a se assemelhar ao Daniel da novela das seis e eu passei a sentir medo dele. Hoje, porém pouco tenho sentido essas presenças e as sombras de outras.

Mas que eu tenho medo de outras assombrações, ah, se tenho! Eu morria de medo do Cavaleiro da Meia Noite que passava na minha rua lá em Arantina, do pintinho que seguiu meus pais por um longo caminho até nossa casa, quando eu ainda era uma criança de colo, do cavalo que se transformou em girafa enquanto caminhávamos em linhas de trem paralelas, eu em uma linha, ele em outra, que até hoje não me lembro como cheguei até a casa de minha avó onde todo mundo riu de mim, ou do lobisomem de Arantina, que tinha nome e sobrenome e era conhecido de minha avó e quando eu o via eu me escafedia. E já ia me esquecendo do cachorro que nos seguiu em uma noite chuvosa, de Andrelãndia até São João del Rei, por quilômetros e quilômetros só desaparecendo quando encontrou um cemitério e lá entrou e não mais voltou.Da freira que vivia dentro de um armário no colégio interno e que a noite saía para fazer o turno da meia noite em nossos dormitórios, eu tinha tanto medo que nem conseguia dormir, com a cabeça completamente tampada e os lençóis presos para proteger os meus pés.

E eu estou aqui chegando à conclusão que a vida é mesmo repleta de medos, mas que alguns medos como esses dos quais falei, são medos menores, que se transformam em folclore familiar e de forma nenhuma afeta a nossa vida de forma permanente e prejudicial. O grande dano são os outros medos, os medos que nos impedem de viver, que quebram nossa ousadia como uma taça de vidro vagabundo qualquer. São esses os medos que precisamos reconhecer para dar fim neles como damos fim aos ratos e baratas que nos perturbam, fazê-los desaparecer com um piscar de olhos, como fazemos com aquilo que nos assombra pelo mistério da morte. Seria muito bom se pudéssemos conviver com eles de uma forma mágica e pacífica como convivi um dia com o ratinho encantado que gostava de assistir televisão comigo. Então esses medos seriam apenas a prudência nos alertando para estudar bem a situação e medir os perigos reais sem se deixar dominar por eles.



Tem um rato na mesinha 
É vedete é diversão 
Não é conversa minha
É verdade meu irmão
 Este fato inusitado 
Aconteceu lá no sertão
Um ratinho encantado
Curtindo televisão!

(versos do Airton Soares que achei uma graça e coloquei aqui como complemento da crônica)