Ontem, ao voltar da caminhada matutina diária, vi ao longe dois cães, um deitado e o outro em pé. Fui me aproximando e, antes de constatar, já tinha imaginado o acontecido. Cheguei mais perto e vi a demonstração mais explícita de amor em uma via pública que alguém já tenha visto.Estava de um lado da avenida, pois já havia acabado o meu tempo ia em direção para a minha rua, mas parei e fiquei a observar. Os cães estavam na parte do meio da avenida, (onde existem as pistas de cimento, grama e areia), sobre a de grama. Era preciso uma filmadora para registrar tamanho amor, tanta demonstração de companheirismo e solidariedade, afeto, consolo e carinho.

Notei que o cachorro que estava deitado estava morto. Um garoto ao meu lado disse: morreu ontem de tarde. O outro, este fazia o que nem dava para acreditar: colocava muito carinhosamente uma pata dianteira por baixo de um lado da cara do que estava deitado e fazia o mesmo com a outra pata. Depois suspendia um pouco a cara do morto e ficava lá olhando para o amigo e para a rua. Para quem passava e para o amigo. Olhava em volta e para o amigo; para o amigo e para os carros que passavam com seus motoristas enlouquecidos. Depois lambia e acariciava aquele que não respondia aos seus cuidados.
Em seguida colocava com carinho a cara do amigo no chão e fazia o mesmo na barriga: enfiava com cuidado as patas dianteiras uma de cada lado e tentava colocar em pé o parceiro. Depois, com mais cuidado ainda, o virava de lado. E repetia tudo de novo.

Fiquei ali, as lágrimas escorriam pelo rosto, com dificuldade de respirar,  tamanha a beleza daquela cena. De vez em quando ele ficava rodando em volta como se fizesse um ritual de despedida, como se orasse, como se pedisse ao Criador que desse uma solução para eles dois. Mas nada acontecia e ele fazia tudo de novo. Quantas vezes durante a madrugada ele foi capaz de ser assim: um verdadeiro amigo cachorro?

Chamei um homem que vende água mineral em uma casa quase em frente e perguntei se ele estava vendo o fato.
- estou, ele respondeu: São cachorros, e daí?
- o senhor não está vendo que um deles está morto? Por favor, ligue para o serviço de busca de animais mortos da prefeitura. Pode até prejudicar seus negócios, Faça isto agora! Disse quase com raiva e impetuosamente para ver se, ouvindo “negócios” ele reagia.
Que vontade tive de chegar perto dos dois e acarinha-los, mas não tive coragem, minhas pernas tremiam e eles sabem quando o humano está incapaz ou com medo, e compreendem. Eu não iria ajudar em nada. Eu nunca sei ajudar quando é preciso. Desci a avenida e lá em baixo parei e olhei. Alguém que ia passando disse: - já levaram.

E ficou a duvida em meu coração: será que o defensor deixou que chegassem perto do seu amigo ou será que levaram os dois? Não sei, só sei que o mundo certamente seria um lugar bom de viver se os humanos fizessem como os cachorros: se não reparassem cor, moradia, pedigree; se soubessem ser úteis e amar desinteressadamente; se fossem capazes de passar uma madrugada inteira junto ao corpo do seu amigo até a funerária chegar; se pegassem em seu colo o amigo morto e, sem escândalos e gritos o olhasse com carinho e fizesse uma oração. O mundo seria outro se as pessoas amassem os animais e se houvesse uma lei: todos seriam obrigados a adotar um cão. Aposto que eles aprenderiam a amar, a saber ser companheiro, a não jogar comida fora, a serem gratos. A fazer cocô e xixi no lugar certo, a não subir no sofá com os pés sujos ou calçando tênis, a gostar de estar limpo e agasalhado, a conter sua frustação de não ser piloto de aeronaves e dirigir com cuidado em lugares onde passeiam cachorros; a retribuir atenção, a defender sua família, a estar perto dela e dos amigos até a morte.



(Pode não ser Crônica, poderia ser um Artigo, um Causo não podia ser, na roça não se atropelam animais, poderia ou não ser um Conto, só sei que é verídico, eu vi!)