Vontade de Chorar
 
 
Estava desesperada. Tinha recebido o contracheque e vira que o dinheiro que iria receber não lhe permitiria nem ao menos comer. Acostumada a dar tudo o que tem sem olhar a quem, não fizera provisões. Questionava não lhe terem sido pagas horas extras. Eu lembrei-lhe: esqueceu-se de que estava de férias? Ninguém recebe horas extras sem trabalho extra. Queixou-se que o Sindicato de sua categoria cobrara uma dívida antiga, feita com o cartão de compras, dívida da qual nem mais se lembrava, pois além de ter se esquecido de pagar as compras (há seis meses) não tinha mais esse cartão. Pensei, sabendo que não deveria falar nada, só ouvir: verdadeiro absurdo esse que permite que se desconte de um salário de merda uma quantia que quase acaba com a merda. Restaram-lhe parcos cinqüenta reais. Isso deveria ser proibido, pensei. Qualquer um sabe que esse dinheiro não dá para ninguém comer, a dívida deve ser cobrada sim, quem deve tem que pagar, mas a cobrança tem que ser racional. Mas estava cansada. Já não da para se emocionar muito com suas histórias que se repetem. Há muito já abandonei esse papel de salvadora do mundo, pensei. Tem três filhos, todos trabalham e são bons, eles a ajudarão...
 
Ficou por ali jogando conversa fora. Alguém pediu que saísse em busca de um lanche e ela comeu seu pão de queijo com coca cola e aparentemente estava reconfortada. Foi então que me disse:
- Sabe, a minha Igreja está trazendo um pastor de fora, ele vai falar amanhã. Lanche feito, todos tinham voltado para suas ocupações, aparentemente só eu lhe dava atenção, mas era uma atenção desatenta. Mas quando ela falou a frase seguinte eu levantei a cabeça e lhe dei toda a atenção que precisava.
 
-Ele vai nos ensinar a escrever cartas para Deus, disse ela. A gente escreve, fala tudo o que está precisando e fica esperando.

Perguntei-lhe se Deus iria responder a estas cartas e ela disse que o Pastor garantira que sim. Foi aí que senti uma vontade grande de chorar. Calei-me enquanto ela me olhava com seu sorriso ao mesmo tempo triste e sem vergonha. Segurei as lágrimas externas, mas meu coração doeu e se enraiveceu ao mesmo tempo. Eu lhe disse apenas: Escute, porque não pede para mim o que está pensando em pedir a Deus? Disse que não, eu já a ajudara muito. E despedindo-se, saiu.
 
Hoje, um seu colega de serviço chegou até a mim e falou: D. mandou dizer que aceita o que você lhe ofereceu. Mandou o seu cartão de banco para você mesma retirar o próximo salário dela em pagamento. Devolvi o cartão e amanhã vou providenciar para que ela tenha como passar o mês. Pelo menos o mínimo. 
 
O que vou fazer não é nenhum ato de bondade em seu estado puro. Não, é um pagamento. Há dois anos, em um momento de extrema dor, absolutamente sozinha com um problema nas mãos, essa mulher, que materialmente nada tinha para me dar, ajudou-me a resolver o meu drama pessoal. E ela o fez incondicionalmente porque é assim que ela age. Ela faz o bem em estado puro. Eu não. Faço porque não gosto de dever. Faço porque acho que tenho obrigação. Faço porque fico indignada.

Mas nem é sobre isso que eu pensei escrever. O assunto que me levou a sentar-me diante de meu laptop, acariciando suas teclas macias, é a indignação que me sobe a cabeça quando vejo os absurdos cometidos pelas religiões em nome de Deus. Como alguém ousa mexer com corações feridos prometendo-lhes absurdos? Como alguém ousa dar-lhes esperanças falsas? Certamente durante a tal palestra vão pedir-lhes que ponham dentro do tal envelope onde colocarão as cartas para Deus,   também  o dinheiro para o selo de envio e de resposta.
 
Fiquei pensando em minha amiga (sim, porque ela é minha amiga) esperando a tal resposta, provavelmente com o dinheiro que iria pedir, dentro do envelope. E como esse dinheiro nunca viria, caso ela fosse questionar, ouviria respostas que poderiam ser dadas em uma Assembléia: Deus não te respondeu porque  você não mereceu. E aquele que porventura tivesse conseguido o benefício pedido seria exaltado perante todos.

Talvez um dia eu volte a conversar com ela sobre o assunto e lhe conte que não precisa escrever nenhuma carta para Deus. Que ela pode conversar tranquilamente com ele em silêncio, porque o único Deus que existe é aquele que habita cada coração. E que nessas conversas ao pé do ouvido talvez Ele lhe contasse verdades que só poderiam ser compreendidas quando o seu próprio Espírito compreendesse que é um fragmento do Grande Espírito. E então ela vai saber que a força necessária para enfrentar esse mundo ela só pode buscar dentro dela.