Cego é aquele que quer ser...

Num lugar qualquer, numa hora qualquer, muitas histórias podem ser contadas das mais diversas formas, para os mais diversos fins, objetivos, para que, assim, as pessoas possam refletir um pouco a respeito sobre as suas próprias decisões.

Sinto-me na obrigação de relatar um causo, uma história, um conto, uma crônica no qual eu vi e vivi por perto. Senti na minha pele, e lutei contra a realidade para achar que aquilo nunca havia acontecido. Sofro de imaginar o quanto ele havia sofrido e, talvez, até hoje, ainda sofra por tudo que passou.

Era numa cidade, se era Capital, ou interior, não vem ao caso, pois, a história é tudo que importa, havia ali um entre muitos casais nos quais passariam despercebidos ante a multidão. Eles sempre andavam de mãos dadas, um sempre sorria para o outro e, até onde eu podia ver, os corações dos próprios batiam em uníssono. Simplesmente o amor, a paixão que os dois emanavam era único e singular.

Mas havia um pequeno porém, um revés, um problema, a garota era cega. E pelo fato de ela ter nascido com esta "doença", ela acabava por se odiar quase que por completo, tanto a ela quanto ao resto do mundo, com exceção, claro, do seu próprio namorado.

Muitas vezes, no banco da praça, os dois ficavam ali sentados, trocando confissões, tendo, por vezes, discursões, mas, no final, sempre conseguindo a paz. Ali o rapaz sempre consolava a moça e lhe dizia que a sua "doença" não a fazia diferente dos outros, apenas especial e, mesmo assim, poderia fazer quase tudo que qualquer outro ser vivente naquela cidade poderia fazer. Mas, ainda assim ela sempre se derrubava, falando coisas negativas que, no final, ele preferiu não querer discutir e só fazia concordar com ela.

Nestas muitas idas e vindas, claro, você leitor já está pensando no que vai acontece a seguir e, também, não poderá se surpreender como um todo. Mas, como eu disse acima, são várias as histórias a serem contadas, e muitas delas não são tão inéditas assim, por isso, digo agora, me desculpem se estou sendo, digamos, óbvio demais, mas está história precisa ser contada, por meio de outras palavras, de outros trejeitos, mas precisa ser contada.

Então houve um dia singular. Um dia bastante especial para aquele casal, quando ela falou: - Se eu pudesse ver o mundo, me casaria com você. - A sua voz parecia sincera e o coração do rapaz palpitou de tal maneira que, se o seu peito fosse um canhão, o havia disparado e, certamente, estaria a caminho da lua até agora.

- Você acha que precisa do mundo para se casar? - Perguntou ele com um pouco de receio.

- Não... mas eu gostaria de experimentar as cores, sentir os raios de sol na sua infinitude, e ver as multifacetas dos rostos que eu nunca vi.

Aquilo fez o rapaz pensar e os dois saíram da praça um tanto calados do que o habitual.

Ver aquilo fez a minha própria pessoa pensar no que viria a seguir e, provavelmente, já sabia o resultado que esperar. Tão pobre e tolo é o ser humano que se faz valer por coisas mundanas.

Enquanto eu pensava, soube do grande acontecimento, teríamos o primeiro transplante ocular da nossa comunidade. Como mero observador, tive o prazer de ver tal maravilha médica acontecer ao vivo e a cores. E sentir a felicidade sem igual da moça, - sim, daquele casal - que iria receber os seus instrumentos para ver o mundo como ele é.

Depois de dias de repouso, as bandagens foram tiradas. Eu estava passando pelo corredor do hospital, vendo uma outra história pedindo para ser contada, quando vi esta cena que, também, estava acompanhando. O receio da moça em tirar as bandagens era como de grande parte das novas mães de receber os seus filhos em seus braços. O seu coração pulava de emoção, os seus olhos novos formigavam de fome pedindo a sensação de luz, esta que estava bem fraca no quarto, a sua boca mal podia conter um sorriso alegre e jovial.

Ao terminar a remoção, ela ficou calada por um tempo, observando o quarto, e todos a sua volta, com exceção do seu namorado. O rapaz tocou em suas mãos, suspirou duas, três vezes, sorriu e perguntou: - Agora que pode enxergar, você quer se casar comigo? - Todo o seu corpo tremeu ao fazer essa pergunta.

Quando veio prestar atenção a ele, surpresa, ficou sem fala por um segundo, ficando, de certa forma, arrependida por ter falado aquelas palavras dias antes. -Sinto muito, mas não posso me casar com alguém que é cego.

Sim leitores, ele era cego e, pelo que eu pude ver, aquilo foi um choque gigantesco para o seu coração esperançoso. Ele soltou as mãos da moça e pediu ajuda de uma das enfermeiras que, sem se conter, chorou discretamente com a cena, e, quase sem esconder, sussurou "puta" com a boca.

Ele, por fim, disse: - Então aproveite bem os meus olhos, adeus...

E todos ali ficaram no mais profundo silêncio, pois ela realmente veio a saber que só se é cego aquele que realmente quer ser.

Daniel Chrono
Enviado por Daniel Chrono em 24/08/2010
Código do texto: T2455991
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