Estranheza
Quem já viajou vai saber do que estou falando: uma das primeiras perguntas que nos fazem é – E do que, ou de onde você mais gostou?
Para mim é impossível dar uma resposta conclusiva porque de cada vez que penso nos lugares que visitei, nos acontecimentos que vivi, nas pessoas que conheci, descubro coisas novas que me fazem reencantar-me com o momento.

Cada lugar por onde passei em minha vida deixou lembranças especiais e muitas vezes uma única palavra diz tudo sobre esse lugar. A Holanda, por exemplo. A palavra marcada fundo em minha memória é estranheza. Por quê? Nada negativo, mas foi ali que encontrei os lugares e as situações mais interessantes de minha última viagem.

A primeira cidade que conheci na Holanda foi Haia. Eu nunca poderia imaginar que um dia iria a Haia – eu tive notícias dessa cidade ainda menina, estudando em uma classe multisseriada em Arantina, quando fui apresentada a história do Águia de Haia – Rui Barbosa. Desde então apesar de ter me encantado pela história, nunca senti vontade de ir lá – aquela visão de menina encantada fazia com que eu visse a cidade como um lugar de gente altamente intelectualizada e séria, mas capaz de se curvar frente ao baiano mirradinho que tantas glórias nos trouxe.  Não foi essa a cidade que conheci. 
 
 
O dia que passei em Haia não foi um dia qualquer. Era um dia em que se comemorava qualquer coisa ligada a Segunda Guerra Mundial. Arquibancadas armadas no que supus fosse uma Avenida, desde cedo estavam ocupadas a espera de um Desfile comemorativo. Pessoas idosas passavam uniformizadas por nós em direção ao local do desfile. Era uma visita curta, a famosa visita panorâmica que toda boa excursão faz pela cidade para que tenhamos uma visão geral e nada mais. Vimos essa movimentação para o desfile e enquanto passávamos por uma galeria aberta, cheia de lojas, repentinamente cai dentro de um filme: Ali estava em um estrado mais elevado um grupo de oficiais de exército formado por homens e mulheres não muito jovens, tocando e cantando como vi em inúmeros filmes sobre a guerra na Europa: um intervalo, uma distração para agüentar o sufoco daquela época. Foi difícil seguir caminho, eu queria ficar ali, parada, estática, como uma dessas estátuas vivas que a gente encontra no mundo todo, até em Lavras. Mas tive que continuar a nossa corridaparapodervertudoemumaúnicahora. Foi aí, atravessando uma rua, que tudo começou: passaram dois aviões em vôo rasante, nada demais. Logo a seguir mais dois mais três mais um mais quatro tudo a um palmo da minha cabeça, uma barulheira infernal e o Walter nosso sabido guia holandês nomeando todos os aviões utilizados na última grande guerra e eu juro, a vontade que tive foi de sair correndo e achar um buraco para me esconder como um tatu, um castor ou uma marmota. Eu fiquei tremendo não como se eu estivesse em um filme, mas como se eu estivesse ali mesmo, mas durante a Guerra. Foi de arrepiar. 
 
 
Alguém agora pode discordar do título de minha crônica? Pois esperem para ver mais.

De Haia fomos para Amsterdã. Essa era uma das cidades do mundo que eu mais tinha vontade de conhecer e não me decepcionei. Fora o susto que eu levava quando ouvia um holandês falar... Santo Deus, holandês falando é como alguém brigando com a gente. Até o Walter, uma simpatia de pessoa, quando falava holandês me metia medo. Pois Amsterdã é realmente uma cidade fascinante. E estranha... já falei aqui em outra crônica: lá tem mais bicicleta do que gente. Umas magrelinhas sem personalidade andando para tudo quanto é lado, puxando outros estranhos transportes, mães com carrinhos de bebê, taxi para turista deslumbrado, eles acoplam qualquer coisa nas bicicletas, e vão buzinando e ai se você não sair da frente. Imagine a minha situação, a rainha das lerdas tendo que dar conta de mim e do Dudu com sua deficiência. Em lugares que não conhece ele usa além da bengala o meu ombro direito e pensa vocês que os ciclistas respeitavam isso? Tinha hora que era eu pra lá e ele pra cá e salve-se quem puder. As bicicletas ali estão em todos lugares, amarradas, soltas, empilhadas. Eu queria ver o rio e pensam que consegui? Não pude chegar perto. Como Walter disse que ali todos têm mais que uma bicicleta e a maioria que vi eram daquelas bem simples, imaginei também que ninguém as roubasse, mas o Walter logo acabou com minha ilusão: é o objeto mais roubado em toda a cidade. Para que? A boba aqui perguntou e ouviu a resposta – Para jogar no rio. Periodicamente a prefeitura limpa o rio e tira toneladas de bicicletas velhas e enferrujadas que não servem nem para o ferro velho.  
 
 
À noite fomos visitar o bairro boêmio. Eu pensava até que holandês não ia ali, que era coisa só para turista, mas que nada! A gente ia andando assim normalmente, dez horas da noite e ainda era quase dia, ruas comuns, bares comuns, e de repente não mais que de repente, sex shops, cartazes anunciando marihuanas e as célebres vitrines: portas envidraçadas, em cada porta uma mulher em roupas ditas sexies, em poses lascivas e os transeuntes olhando de esguelha. Ninguém, nem os fregueses fixam os olhos nelas, é como se tivéssemos passando por vitrines comuns de lojas de modas, mas vitrines comuns de lojas de moda a gente olha.

Pois meus amigos, o papo está bom, mas estou notando que o meu espaço está acabando e assim sendo vou dividir em duas essa crônica, pois ainda tenho muita coisa para falar justificando minha estranheza. E também quero dizer que esta crônica e a próxima são dedicadas ao meu amigo Miguel, que mora na Holanda, é casado com uma holandesa, tem três filhos holandeses, uma sogra holandesa, e uma rede onde passa os dias deitado maquinando crônicas para postar aqui. E se eu estiver mentindo ele que desminta.
 
(Da série Viajando por ali e aqui/34) 
 
Foto do meu álbum de viagem. Esse é o Dudu meu companheiro de estranheza.