LEMBRANÇAS DE UMA TRAÇA MÍOPE - 1
Cresci cercado de livros. Meu avô paterno era representante e distribuidor da extinta Editora Vecchi, e quando ele morreu, além de histórias, nos deixou montes de gibis, revistas, almanaques, álbuns de figurinhas. E livros.
Papai misturava bang-bang com La Rochefoucauld. Meu irmão lia Pecos Bill, minha irmã lia Pollyana Moça e vovó lia José de Alencar. Mamãe não lia nada, sua vida já é uma fotonovela.
Nessa angústia de ver todo mundo lendo – na cama, na mesa, no banheiro – eu criança também queria as letras para mim. Alfabetizar-me foi uma libertação. Eu podia ler & entender.
Meu primeiro livro de verdade, que escolhi e ganhei – era meu aniversário, entrei na grande loja de brinquedos e na prateleira de livros lá estava ele - foi A Rainha da Neve, de Christian Andersen. Um livro tão triste, que quando eu relia ficava tristíssimo também. Já desfiz e refiz minha biblioteca muitas vezes e o Rainha da Neve continua comigo. Mas não o releio mais. Ando evitando tristezas, a bílis agora só quer sorrisos.
Descobri em seguida Monteiro Lobato, as edições de bolso da Ediouro - eu mandava o pedido pelo correio e esperava com impaciência. Conheci outros planetas através da Coleção Argonauta, de uma editora portuguesa, herança do meu avô. Robinsons dos Cosmos e A Astronave da Esperança foram lidos várias vezes, com curiosidade e devoção. Eu só não entendia por que o português daquelas histórias maravilhosas era tão estranho. Muito depois é que fui perceber que uma tradução para o português brasileiro é diferente do português de Portugal.
No início da minha adolescência nossa vizinha ganhou como legado cultural de uma tia morta uma gigantesca estante de sucupira cheia de livros. Parece que heranças bibliofílicas me perseguem. A vizinha não tinha onde guardar tanta coisa. Adivinhem onde os livros foram parar?
Foi uma época febril, nervosa, depressiva. Lendo sem parar - todo tipo de autor, todo tipo de narrativa - eu tentava esquecer as dores da minha primeira decepção amorosa. Li tanto que me deu um tilt. Hoje os únicos títulos que eu lembro daquela estante rococó são A Sereia, de Camilo Castelo Branco, um tal Flor de Amor, de Luciana Peverelli e uma coisa chamada O Castelo de Kehir, que nem sei de quem é. O resto evaporou. Não lembro mais de nada. Devorava um livro atrás do outro.
Aí um dia minha mãe entrou em desespero. Gritou que me levaria ao psicólogo se eu continuasse assim.
Assim como?
Uma traça.
Mas uma traça cheia de esperanças.