Além de mim.
 
 
Acordo assustada, como se tivesse sido arrancada de uma vida para outra, não mais que de repente. Sei que enquanto aparentemente dormia, outra vida eu vivia. Tenho certeza e dessa vez quase consegui pegar o fio que une minhas duas vidas, a que vivo dormindo e a que vivo acordada. Mais uma vez ela me escapou. A única coisa que consegui trazer dela, foi um laivo de melancolia que teima em persistir, como se me recriminasse por não ter feito um esforço suficiente para unir as duas vidas. Deixo meu braço cair para fora da cama e minha mão toca um objeto conhecido. Um livro. Não quero ler agora, não vou ler, se não quero. Mas o pensamento vagueia pelas histórias deste livro que estou lendo, sem nenhum controle.
 
É um livro estranho, muito estranho. Nenhuma história simples, embora simples sejam as palavras que as contam. Por que continuo a lê-las se cada uma me faz sentir tão esquisita quanto os personagens que a vivem?  O meu eu que pensa pergunta ao eu que sente, mas há uma falta total de comunicação entre eles e nenhuma resposta aparece. E ao escrever essa frase eu digo Eureka: é isso! Comunicação. Não existe nenhuma comunicação entre os personagens dos contos do livro de Paul Bowles. Um muro separa todos de todos. Um muro separa cada um de si mesmo. E é esse muro da incomunicabilidade entre culturas diferentes, entre pessoas diferentes, entre o homem e seus outros eus, que está pesando nesse eu que agora escreve.
 
 Mas afinal, quem sou eu? Quem são os outros eus que habitam esse corpo que se convencionou chamar por um nome de avós, que é o meu? Se existe um eu que dorme e outro que vive acordado, se existe um eu que pensa e outro que sente, um eu que ocasionalmente transcende e se isola dos outros em um mundo inatingível, vidas paralelas que quase nunca se cruzam, qual seria o sentido de tudo isso?
 
Chalía, uma das personagens de Bowles, encontrada no conto Em Paso Rojo fala a certa altura da história, sobre a estranheza que sente em relação a tudo, vida e morte, pessoas, animais, flores e pedras, tudo pertencente ao mundo exterior, que não era ela. Às vezes olhava seus próprios pés e mãos e se sentia assim também em relação a eles: mundo exterior, tudo fora dela. E é essa estranheza que às vezes sinto também, como se nada existisse realmente, só esse pensamento que age como a mola propulsora e obriga esses dedos que não são meus a digitarem essas palavras que teimam em adquirir vida própria, também além de mim.
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