A VIDA NÃO SERÁ AMANHÃ.
Por Carlos Sena
A gente não pode se deixar levar pela rotina estafante do dia-a-dia. Ela tem tirado de nós a dimensão principal da vida que é a felicidade. Trabalhar é bom, melhor é manter a saúde trabalhando. Dinheiro é bom, mas não devemos lhe dar mais valor do que realmente tem.
A vida moderna tem cobrado um preço altíssimo pelas benesses do consumo – ela tem sido primorosa na artificialização dos sonhos de muitos, principalmente dos jovens. Conseguiu colocar ilusões fúteis calcadas em superficialidades como roupa de grife, corpo escultural, irreverências mil.
Parafraseando DALAI LAMA, a gente ganha muito dinheiro, depois gasta todo para cuidar da saúde. A gente tem benefícios que não valem os custos, pois quase sempre têm juros embutidos e correção monetária a preço de violência, drogas, solidão, egoísmo, caráter duvidoso. Dá-nos a impressão que temos vida eterna, tamanhas são as propostas de "felicidade" "vendidas" alhures. O homem teria que não morrer para poder desfrutar de infindáveis propostas que a sociedade de consumo nos faz, desde as mais factíveis às mais fúteis como idolatria e culto às famosidades como que esperando o dia de também sê-las.
Diante da morte do filho querido, ocasionada pela violência do trânsito, uma atriz famosa disse a frase encantadora que transcrevo: "meu filho está vivíssimo, mas quem morreu fui eu". A dor de perder um filho jovem nos remete a perversa lógica de que os jovens não morrem, ou deverão morrer quando velhos. A vida tem essa sabedoria que se contrapõe aos argumentos imediatistas do existir. Esse filho poderia ter sessenta anos e para a mãe seria a mesma dor. Parece-nos que a modernidade, macerada pela cultura do belo, do corpo e da eterna juventude, tenta driblar a realidade milenar que norteia nossos saberes. A vida tem que ser intensa.
Amanhã poderá ser tarde demais. "A vida é um ai que mal soa", nos lembra Gil Vicente, a despeito da bíblia que não nos quer preocupados com o dia de amanhã.
"Tudo vale a pena se a alma não é pequena". Talvez na concepção de uma ilustre anciã que, motivada por viver a vida como se cada dia fosse o ultimo, dormia de óculos. O detalhe é que era cega, mas queria dormir de óculos para sonhar com os bichos e vê-los com nitidez, posto que era praticante habitual do jogo do bicho.
Não obstante a cegueira física, tinha a alma cheia de vida. Sua felicidade não diminuiu com a dificuldade inerente a quem não enxerga. Sem pretender colocá-la como referencial, outras tantas pessoas maravilhosas estão neste momento sendo intensas, apesar das dificuldades.
Não esperemos que um fato extraordinário nos toque o coração. Há pessoas que só redefinem suas vidas em função da essência, diante de tragédias. Naturalmente a vida se encarrega disto, pois nem sempre são trágicas as novas formas de redefinição de felicidade. Podeis inquirir: não se pode ser feliz sendo rico? Cristo condenou o rico avarento. Aquele que utiliza bem o seu patrimônio em função dos outros, de causas sociais, certamente que não sofrem reprimendas do Criador. Penitencio-me pela assertiva de que o Criador não nos faz reféns de nada, senão não seria grande, onisciente e onipresente.
Retomemos a virtude da vida simples. Descubra cada um em seu local, as belezas que estão PRECISANDO SER descobertas, de interatividade. Dependendo do contexto, a solidão consentida é mil vezes melhor do que companhias antipáticas que às vezes suportamos por cordialidade.
A vida não nos quer na cordialidade, mas na irmandade do gesto. Desde o mais simples como dizer que ama. Deste o mais complexo como pedir perdão. Desde o mais indecifrável como andar sozinho pela certeza de se encontrar consigo mesmo nalgum botequim da avenida.
A vida urge, não surge. Até surge, como conseqüência, não como causa. A causa maior é a paz que na guerra do dia-a-dia a gente não tem encontrado. Por não encontrá-la a gente se desencanta. Desencantando-se, permite solo fértil às frivolidades que o capitalismo tenta transformá-las em nossos sonhos.