BOCA SEM LÁBIOS
– Bud, quando observa as pessoas, vê você dentro delas também as preciosidades todas, a transbordarem em beleza específica, que identifica e define o conjunto de elos na corrente da personalidade? Vê você a calma na alma... a meiga expressão da timidez...vê o arroubo dos ousados, você nota a cautela dos inseguros... a certeza dos que estão errados, a coragem do vencedor? Também você olha dentro delas... e vê o escultor à espera do cinzel, vê a chama que acalora a idéia,veste com palavras cada pensamento...vê um tesouro, de intenso ardor e colorido, a expandir-se na pauta à espreita do compasso correto para compor a música? Você vê, dentro, a bondade esparzindo fagulhas de empatia, que abraça e acalenta o irmão esfarrapado e pedinte de rua? Você vê, dentro, aquele clamor mudo que leva a um velho abandonado um instante eterno de carinho... você vê, dentro, quando o fluxo do amor, em forma de caridade, perdoa os pecadores não arrependidos? Você vê... você vê...
– Dentro delas?
– Dentro delas. Refiro-me a...
– NÃO!!! Dentro eu só vejo horrores! Tudo em branco e muito preto. Vejo formas descontínuas e... deformadas! muito de árido e seco, sem sequer alguma lembrança de plenitude...
– Que horroroso isso aí!... mas...
– Nem mais, nem menos, ora. Vejo um interior intrincado, em plena desordem, sem um instante de harmonia. Tal como a floresta – que se desgalha e se aniquila – em plena e funérea tempestade. Tempestade calada... silenciosa...!
– Mas, Bud, nunca ouvi uma tempestade... hum... silenciosa...
– Cale-se, ó mente energúmeno, não interromper quando flui um pensamento analítico! Vejo fome nesse radical silêncio! Vejo a mão desvalida cuja impressionante magreza implora...
-?...
– Vejo o pé nu que não vai a parte alguma, espectro do olímpico outrora...
– Bud, acho que você...
– Cale-se, mente energúmena! Não interromper quando flui um pensamento analítico...! Vejo a boca sem lábios que não grita palavra alguma... vejo olhos que não existem, a contemplarem um presente escuro...
– E... orelhas, Bud, essa sua pessoa aí, ela tem... orelhas?
– Orelhas? Mente desnaturada, mente... demente, desde quando o interior tem orelhas? Orelhas no avesso? A menos, é claro, que se trate de excepcional orelhudo e...
– Não fica bem falar mal de pessoas ausentes.
– Isso não ocorre.
– Como não! Quer fazer-me crer errado o afirmar que não fica bem falar mal das pessoas ausentes?
– Não ocorre a pessoa estar ausente.
– Não entendi, mas já cansei a beleza...
– Também não ocorre!
– Faço de conta que não entendi. Acaba logo com aquela tempestade silenciosa, com a boca que não fala, com olhos inexistentes a contemplarem um escuro ausente...
– O escuro está presente.
– Bom, mas acabe logo com essa catástrofe... com essa... catástrofe! Só mesmo a sua... catastrófica e tuberculosa imaginação poderia ver ou criar tais nefastas fantasias!
– Nefasta fantasia uma ova!!! Acabaram de chegar e são todas SUAS essas radiografias!!!