O caminhão de Goiás (Viagem a Terra do Nunca)

O Caminhão de Goiás (do livro "Viagem a Terra do Nunca".)

A minha mente, sempre em busca de coisas diferentes para se ocupar, encontrou uma nova oportunidade de fuga quando apareceu em minha cidade um desses caminhões paus-de-arara que recrutavam trabalhadores rurais para as lavouras do Centro-Oeste brasileiro, em plena expansão. Apesar das muitas e terrificantes histórias que se contavam sobre o tratamento de escravo que se dava a tais trabalhadores, não pestanejei em tomar a decisão de subir no caminhão e fazer planos de rumar para bem longe daquele lugar simplório que já me sufocava. Eu queria horizontes novos, ansiava por ver lugares diferentes, viver as aventuras que até então, só vislumbrava através dos livros, gibis e revistas que eu lia.

Fiquei olhando a movimentação do povaréu em torno do caminhão pau-de-arara, ouvindo o chamamento para quem quisesse ir para Goiás através das ondas sonoras da Voz de Gongogi, o serviço de alto-falantes de Anizio, pai de Geraldino, um de meus amigos.

Quando a noite chegou, saí de minha casa como se tivesse indo para a escola e sorrateiramente subi ao caminhão. Coloquei-me de pronto como voluntário para ir anotando as diversas demandas e preocupações dos campônios ali ajuntados, como uma espécie de secretário informal, visto que a maioria deles era constituída de analfabetos.

Eu não conhecia ninguém naquele grupo formado por deserdados da sorte, gente desesperançada que pouco ou nada tinha de seu. Aquelas pessoas caladas, os bancos duros, feitos em madeira, do pau-de-arara, tornava-me ainda mais encolhido, esperando com ansiedade a hora de ouvir o ronco do motor do caminhão, indicativo de que estávamos partindo de Gongogi para bem longe.

(...)

Não me atrevi a descer do caminhão prá nada, temeroso de que fosse visto por algum conhecido e denunciado incontinenti à minha cuidadosa avó.

Já me via trabalhando numa daquelas fazendas de arroz do Cerrado brasileiro, como auxiliar de algum fazendeiro rico, destino muito diferente daquele bando de deserdados que se apanhavam comigo no caminhão. Para meu alívio, lá pelas dez horas da noite, finalmente o caminhão pôs-se em movimento, coincidindo com o término de minhas aulas no ginásio local. Eu previa que a minha avó só daria pela minha falta no dia seguinte, o que seria tempo mais que suficiente para que meu plano de fuga fosse bem sucedido.

Umas três horas de viagem depois e chegávamos a Jequié, aonde o caminhão pau-de-arara faria uma parada em um restaurante para que os cansados viajantes comessem alguma coisa, tudo por conta dos aliciadores daquela gente, antes de pegarem a estrada para o Centro-Oeste.

Descemos do caminhão para fazermos a necessária refeição, pois iríamos rodar durante toda aquela noite. Os agenciadores daquela carga humana tinham pressa de chegar ao seu destino.

(...)

Mal pus os pés no chão e me aproximei do restaurante, divisei, na porta da sala de refeições, a figura carrancuda de minha avó olhando fixamente para mim, acompanhada de um motorista que ela contratou para ir atrás do seu neto fujão. Eu não disse uma palavra: simplesmente a abracei e voltei para casa com dona Maria Pequena...

O rescaldo dessa malfadada aventura foi agüentar a molecada da minha cidade me aporrinhar durante um longo período, a imitar o desgraçado do barulho do motor do caminhão pau-de-arara, aos chistes de “Bip, bip! Olha o caminhão de Goiás”.

Aqueles que se arriscavam a ficar ao alcance de minhas mãos pagavam caro a afronta.

Alguns olhos roxos e muitos cascudos distribuídos à porfia naqueles pestes que não queriam largar do meu pé, foi o que bastou para ir desestimulando os mais insistentes, até que minha frustrada proeza de querer ir para Goiás num caminhão pau-de-arara caísse num previsível esquecimento, coisa que durou mais de um ano para se concretizar.

(...)

Em razão dessa fuga malfadada, tive de fazer um acordo de cavalheiros com a minha avó: prometi-lhe não mais fugir, mas que iria embora assim que fizesse dezoito anos, atingindo a minha maioridade legal. Ela concordou com a minha reivindicação, desde que eu fosse até a casa da minha mãe e conseguisse dela a anuência e os recursos para tornar viáveis os meus projetos.

Tive de amargar em Gongogi mais dois longos anos, até que, finalmente, vi a mim mesmo, sentado num ônibus viajando para São Paulo, a até então desconhecida capital dos bandeirantes.

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 25/07/2010
Reeditado em 06/01/2020
Código do texto: T2398606
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