As minhas primeiras escolas e a professora Clarisse.
Viagem a Terra do Nunca (As minhas primeiras escolas e a professora Clarisse.)
Desse período de calmaria me ficou a lembrança da professora Clarisse, durante as aulas dadas em sua escola localizada bem de frente para o rio Gongogi, cantando conosco, antes do início das aulas, a música “Luar do Sertão”, composição magistral de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco. Toda vez que a canção chegava ao trecho que falava da onça,
“Enquanto a onça
Lá no verde da capoeira
Leva uma hora inteira
Vendo a lua derivar.
Não há oh gente oh não
Luar como este do sertão “ eu sentia os olhos da própria fera pousados em mim, gelando de pavor ao imaginar os seus dentes poderosos cravados em minha jugular, ao mesmo tempo em que me encantava com a visão da lua surgindo por trás da serra. Explicar a magia do refrão “Não há, oh gente, oh não, luar como este do sertão.” contido nessa canção é uma tarefa muito complicada para mim. É preciso que a própria pessoa sinta a força da letra, (E, principalmente, apreciar a visão de longas noites de lua cheia no sertão.) para só então entender o que estou tentando aqui expressar. Eu viajava, e até hoje isso acontece, naquela canção.
Depois da escola da professora Clarisse fui estudar no Grupo Escolar Pompílio Barreto, época de revolução no Brasil e de uniformes imitando os todo-poderosos militares, mandões do momento, em tom verde oliva, com direito a gravata azul-marinho e tudo o mais. Eu simplesmente detestava aquilo.
Fiquei no Grupo Escolar Pompílio Barreto até a quarta série do curso primário, quando então tive de ir para Itabuna, em busca de dar continuidade aos meus estudos, posto que em Gongogi ainda não havia sido implantado o curso ginasial.
Dessa época de minha vida em Gongogi também me recordo de meus dois amigos, Uda e Du, dois irmãos negros e muito pobres que moravam um pouco distante de minha casa. A casa em que eles moravam era bem enfumaçada e quase sem mobiliário, com a mãe deles sempre a andar de um lado pelo outro da casa, como a procurar por um pai que eu nunca vi por lá. Uda era o mais novo dos dois irmãos, mais parelho com a minha própria idade e com o qual eu me dava melhor. Trocávamos gibis, os quais eu carregava escondido debaixo da camisa prá que ninguém, especialmente o meu onipresente avô, soubesse o que eu andava a ler. Já Du, o outro irmão, era um rapazote taciturno, forte como um touro, e que já ajudava a mãe na manutenção da casa com os pequenos trabalhos que realizava pelas fazendas da região. Além da troca de gibis que eu fazia com Uda e Du, também tinha o Ozéias, um menino bem branco e gordinho que trabalhava na selaria do pai dele, cujo fundo dava para descortinar as águas do Gongogi escoando em direção ao Leste, buscando o mar. Nesta selaria, que também atuava como sapataria, um concorrente direto da sapataria de meu avô, o Mancha, um oficial sapateiro que tinha uma mancha grisalha em seus vastos cabelos castanhos, como se pintada de encomenda. Mancha era um camarada risonho e brincalhão, que pouco ou nada entendia de nosso interesse por personagens tão diversos como Kid Colt e Pernalonga, não deixando de passar também pelo nosso verdadeiro fanatismo pelas figuras do Fantasma e do Super-Homem, o invencível herói vindo do planeta Kripton. Quando eu chegava na selaria para trocar gibis com Ozéias, percebia o sorriso incrédulo de Mancha, vendo-nos ausentes, a discutir as proezas de nossos heróis.
Os meus dias transcorriam entre o trabalho com meu avô, logo que chegava da escola, e as fugas para o campo de futebol, depois o banho no rio Gongogi, junto com todos os meus amigos.
O rio Gongogi é um capítulo a parte na vida de todos os que o conhecem: suas águas de uma pureza ímpar, seu Pitu inigualável, suas curucas, as locas de pedra aonde brincávamos de esconde-esconde, suas indefectíveis lavadeiras a mostrar suas coxas morenas enquanto cantavam antigas canções, sem falar no lendário Boitatá, apavorante criatura que preencheu de pavor muitas de minhas noites de insônia. Em suas águas nós travávamos heróicas batalhas, encarapitados em nossos barcos construídos com os bulbos de baronesa, uma flor aquática muito comum na região Nordeste do Brasil, que também serviam como projéteis, atirados uns contra os outros, batalhas que só terminavam quando conseguíamos atirar à água os componentes do barco inimigo. Do rio Gongogi também aproveitávamos de suas praias para jogar bola, depois de nadarmos uns quinhentos metros correnteza abaixo, com um de nós se encarregando de levar a bola por uma estrada lateral para não corrermos o risco de perdê-la. Os mais hábeis e corajosos dentre nós arriscavam-se ainda a pular de cabeça nas corredeiras.
O rio Gongogi e suas águas límpidas estão impregnados dentro de meu corpo e também na minha alma, servindo-me de companhia inseparável em qualquer lugar aonde quer que eu venha a viver.