Viagem à Terra do Nunca (Os tempos estão mudando...)
Viagem á Terra do Nunca (Os tempos estão mudando...)
A BR-101 começou a ser rasgada por entre as plantações de cacau no início dos anos sessenta, uma entre tantas outras obras ambiciosas do recém-instaurado governo militar. Tomei ciência desse fato quando fui visitar o meu tio Barreto na fazenda, uma imensa propriedade pertencente a estrangeiros, (que nós, com um sentimento misto de pejorativo e admiração, chamávamos de gringos) que ele administrava nas proximidades de Camacã, no Sul da Bahia.
A casa em que tio Barreto morava com a família ficava logo abaixo do nível da estrada, erguida com terra acumulada e compactada por imensas máquinas que eu nunca havia imaginado existir. As tais máquinas pareciam-me monstros antediluvianos, abocanhando enormes quantidades de terra que moviam de um lado para o outro incessantemente. Nós, Pagode, filho mais novo de tio Barreto, Jorge, nosso primo, filho de um irmão dele, e eu, todos na faixa dos quinze anos, ou pouco mais do que isso, aproveitávamos toda aquela movimentação de terra para brincarmos.
Pagode um dia me mostrou uma casinha branca, já desbotada pelas intempéries, localizada do outro lado da BR-101, em que moravam algumas meninas, cuja ocupação principal, além de cuidar do pequeno boteco que havia na casinha, era também de atender os homens que trabalhavam na construção da estrada em suas necessidades sexuais, ofício bem mais lucrativo para elas. Lembro-me de duas dessas meninas: uma escurinha, magra e de cabelos em carapinha, que ostentava fortes dentes e um sorriso meio como se não estivesse entendendo nada do que acontecesse em seu redor, tal o estado de alheamento que aparentava. A outra, a mais velha das duas, era clarinha, com grandes cabelos negros, sempre presos por um lenço um tanto encardido colocado sobre a cabeça, não aparentando as duas meninas mais do que vinte anos de idade.
Por absoluta falta de ter o que fazer Pagode um dia me convidou para irmos conhecer um trecho da plantação de cacau da fazenda, situada do outro lado da estrada. Esperto, ele já havia combinado de antemão com as duas meninas para irem conosco nessa aventura.
Achei a idéia ótima, e, juntando a idéia a ação, lá fomos os quatro para excursionar entre as plantas de cacau. Pagode já estava enturmado com a menina mais velha, sobrando para mim, (era pegar ou largar) a outra menina, a da carapinha.
Nesse ínterim, como se por um passe de mágica, Pagode desapareceu de nossas vistas, ficando a sós eu e a menina, que não era lá muito falante, aliás, não falava quase nada mesmo, limitando-se a um prolixo “sim”, ou então ao seu contrário: um sonoro “Não”.
Foi essa palavrinha mágica que ouvi daquela boca ornada por dentes fortes quando tentei colocá-la sob meu corpo, debaixo de uma frondosa árvore de cacau que nos servia de apoio.
Recolhi de pronto o meu entusiasmo de ocasião, e me contentei em bater em retirada, já que uma mordida daqueles dentes não devia ser lá muito agradável.
Quando chegamos em casa ainda tive de ficar a ouvir os chistes e remoques dos meus primos, visto que voltara do tal passeio de mãos abanando.
Havia ainda na fazenda que o meu tio administrava, mais duas filhas suas, a Eli, minha paixão adolescente com ares de platonismo, e a Grimalda, uma morena muito bonita. Robério, o irmão mais velho, estudava em Salvador, a capital do estado, fazendo a faculdade de Odontologia, na qual se formaria anos depois, restando com tio Barreto e a mulher as duas meninas e meu primo Pagode.
(...)
Depois desses dias de férias passados na fazenda com os meus primos fui reencontrar Eli e Grimalda bem depois, já na Coréia, localidade onde tio Barreto achou por bem exilar Grimalda, depois que a moça resolvera namorar um fazendeiro local (já casado, coisa impensável para a época) e fora muito longe nesse relacionamento.
A solução que tio Barreto achou para o infausto caso de amor clandestino de minha prima Grimalda, foi arranjar um casamento que salvasse a honra da “filha perdida”. A bola da vez para solucionar essa questão espinhosa foi o Moacyr, um outro primo nosso que havia retornado de São Paulo recentemente.
Foi contratado às pressas o casamento de Grimalda com Moacyr. Para tanto, meu tio Barreto providenciou um bar para Moacyr tomar conta, com uma casa na parte de cima aonde os dois moravam. Esse bar, o dote que coube ao Moacyr, ficava vizinho do armazém de secos e molhados do meu padrasto Valdomiro, o que facilitava em muito o meu contato com Grimalda, sempre sozinha, já que o marido-tampão passava a maior parte de seu tempo no bar, jogando sinuca e bebericando, na boa vida que sempre quis. Nem a beleza de Grimalda foi páreo para o vício do rapaz, sempre às voltas com bebida e jogo.
Muitas vezes vi o Moacyr (um galalau de quase 1,90 mts de altura e uns noventa quilos de peso, moreno e de cabelos sempre bem penteados) no cabaré local, sempre risonho com as meninas, volta e meia arrastando uma delas para um dos quartinhos postos a disposição dos clientes mais animados.
Grimalda, que contava nessa época com uns vinte anos de idade, relatava as suas tristezas para mim, enquanto folheava as suas revistas de fotonovelas que adorava, relatos que eu ouvia muito interessado, mas pouco ou nada podia fazer para consolá-la. Com a chegada da irmã, Eli, a pobre moça teve mais companhia.
A conseqüência mais imediata da visita da irmã na casa de Grimalda, foi Eli reportar ao pai, assim que voltou para a fazenda, o que estava acontecendo: em pouco tempo tio Barreto, em pessoa, chegou à Coréia para confirmar os dados que lhe foram passados pela filha mais nova. Em menos de uma semana na povoação, tio Barreto deu um jeito na vida de Grimalda, terminando com o suplício dela. Vendeu o bar, dispensou o Moacyr e levou a filha de volta para sua casa.
(...)
Acabou-se ali, com mais uma intervenção de tio Barreto, aquele casamento que não durou nem três meses, e que não tinha jeito de dar certo desde o começo.
João Bosco