O NENÉM ANÁRQUICO
Desta feita, estou na poltrona 29, a caminho de São Paulo.
Ao ler isto, o Bud, sempre em volta xeretando, cruza os braços e olha-me com aquele determinado ar de enfado, característico das lícitas exigências maiores, que tipificam as aspirações das pessoas bem dotadas intelectualmente.
Todo esse palavrório significa que, ao bem dotado, é muito mais difícil de agradar. Então vem a exclamação do enfadado Bud!
–Novamente história de ônibus?!
–Novamente por que? Eu ainda não fiz nenhuma história de ônibus! O leitor é testemunha! Até agora, não há um tema meu sequer que se inicie assim:... era uma vez um ônibus...
–Você sabe que não e isso o que eu quis dizer...! Não seja tão... antipática.
–Mas foi, exatamente, o que disse. Não seja tão... impreciso! Olhe, vamos fazer um trato! Eu vou aí onde você está. Você vem aqui, onde estou. Eu xeretarei... você trabalhará.
E dito e feito. Trocadas as posições, o Bud escreve:
“... eu estava ocupando a poltrona 27!”
(Não acredito – é o maior gozador explícito da Paróquia!) – Vamos esperar.
–Na janela. NÃO!! Na janela não! Ê descômodo, e tem uma ventania... É errado dizer na JANELA ; diz-se à janela, que, assim, fica respeitoso às exigências gramaticais do ilustre leitor...
Ao meu lado, na 28, acomoda-se um senhor maduro, pescoço taurino, bem robusto, sobejante em banhas muitas por todos os lados. Com o balanço do ônibus, toda aquela... inteira obesa pujança foi, num primeiro tempo, ocupando os baixios da poltrona. Como ainda houvesse banha excedente, eis que, num segundo tempo, ela invade todas as laterais do próprio território e promove ainda, num terceiro tempo, a indevida ocupação de parte do MEU... espaço!
Ora bolas!!
Sinto-me comprimida entre duas muralhas! uma é a parede do ônibus; outra é a lipidinosa do meu porcino companheiro de viagem.
Ah! Nestes momentos de... aperturas, cabe-me um evocativo pensamento: salve os Vigiantes do Peso!...
Bem, com um sentimento claustrofóbico pressagiando a... limitação espacial da viagem toda, vejo, no próximo ponto, embarca uma senhora com um neném pequenino e... mais cinco sacolas grandes! Três delas são em plástico transparente e permitem aos mais curiosos observadores conhecer o conteúdo, primorosamente dobrado. Na maioria fraldas, cueiros, mijões, blusinhas de lã, crepe para fraldas, manta amarela, manta verde, manta branca.
Com certeza, esta mãe não quis saber, antecipadamente, o sexo do bebê. A pobre mãe – não que lhe conheça o saldo da caderneta de poupança! – desajeitada, enrosca-se aqui, entala-se acolá pelo corredor do veículo, arrastando todo aquele... considerável volume que desloca.
Três sacolas no bagageiro, em cima, duas sacolas no chão, neném no colo, f1nalmente... assenta-se a mãe, ao lado de um moço.
De olhos pequenos, tem nariz fino e longo, cabelos curtos, moda... arrepiada, barbicha loura no mento, expressão hircina, ares tristes.
Eles estão duas fileiras à frente, do lado oposto.
Tudo pronto. Seguimos.
Por dez minutos, tudo pareceu normal. No décimo primeiro, contudo, aquele nenenzinho tão inocente dá ares de impaciência. Balbucia sílabas para nós desconexas, no que acredito vislumbrar uma séria manifestação de protesto. Ou... uma sólida e expressiva reivindicação à mamadeira. Mas, adulto custa a entender neném, de forma que não resta à dócil criaturinha outra saída que não exercer, espalhafatosamente, pressão... digamos... política! Ainda sem acesso aos recursos da mídia, sozinho, arma um barulho infernal, que vai desde o agudo, estridente ao choro lamentoso, com soluço e perda de fôlego!
– Buááááááááá´!!!...Ihhhhrrrrchhhch!!....Auuuuuumm !
– A mãe o balança e o afaga, tentando fazê-lo calar, mas, ao que tudo indica não vai haver negociação.
Um minuto desse barulho é como dor de dente! Uma eternidade lenta de agonia! O rapaz de barbicha olha, indignado, como um bode olharia em frente ao espelho...
Todos os olhares se fixam, ora na mãe, ora no neném, lembrando os movimentos dos expectadores de animado jogo de pingue-pongue! Ela, frenética, inicia, nervosa busca. Enfia a mão na primeira sacola, busca e rebusca; vira e revira. No afã, algumas fraldas ficam fora! Enfia a mão na segunda sacola, apalpa, procura, remexe. No afã, alguns cueiros ficam fora!
Bem, até chegar à quinta sacola e ao quinto afã, o ônibus já adquire aquele aspecto de mudança, no momento exato em que os carregadores organizados despejam, desorganizados, tudo na casa nova e vão se embora, deixando a patroa... sem saber por onde começar!
De repente ilumina-se o olhar da mãe, que fita as costas da poltrona à sua frente. Graças a Deus! A mamadeira está bem ali. No recôndito daquela espécie de bolsa vertical com elásticos nas laterais! Provavelmente, a mãe do neném, com espírito bem prático, ali a colocou, de forma a, em caso de emergência, ser encontrada com... bastante” facilidade”!
-E você não a viu lá, Bud? Por que não avisou?
-Eu a vi... mas nunca se sabe... com nenéns modernos... pensei que estivesse à cata de... chicletes de bola... e, até agora, não fiquei sabendo onde eles estavam guardados