Juca & Neco
Juca & Neco
Para certas fases da vida, há um determinado percebimento. Crianças de antigamente percebiam árvores. Juca chegou na minha vida quando eu não mais descartava os detalhes. Estava de férias, na praia, sonhando. O sonho dizia respeito a um grupo de pessoas desconhecidas em torno de um círculo negro, tendo em sua volta um halo azul e outro rosa. As pessoas diziam: vejam, isso é um coração. Minutos depois, desperto, quando chego na sala havia um filhote negro de peito branco, do tamanho de um pé de sapato. Me falaram assim: “Sabe onde ele nasceu? Na Praia do Sonho”. Desse modo chegou o Juca, um detalhe captado.
Neco apareceu na mesma data, por incrível que pareça, um ano depois. Vinte e cinco de janeiro de 2007. Estava em cima de um saco de lixo, na calçada, mirrado, assustado, recém nascido. Outro detalhe. Naquele ponto nascia uma dupla.
Juca, negro, de peito branco, sereno, olhos castanhos, 50 cm de altura, se tanto. Neco, mínimo, castanho claro, um autêntico filhote de cruz credo, orelhudo, irrequieto, atarantado. Sábia natureza, que conferiu-lhe a dimensão exata.
Juca & Neco, dois vira latas com um futuro promissor. Estava escrito que seriam felizes até o fim de seus dias. Pode-se dizer que sua felicidade durou até ontem. Juca & Neco, antes de mais nada, companheiros de viagem.
Havia esquecido que 5 de julho é o aniversário de minha avó materna, que noutro plano deve ter celebrado 96 ou 12 anos. Ela foi uma grande companheira de viagem. Na hora dos translados percebe-se com aguda lucidez o real companheirismo. Durante a viagem são tantos solavancos, tantas pré-ocupações, tantos quereres e frustrações, que perde-se um pouco o tino. Chega o momento, contudo, que os detalhes da vida se transformam na própria vida e a viagem torna-se suave, a despeito dos percalços.
Juca & Neco, dois rapazes viris com cordas vocais potentes, jamais tiveram em seus lábios a cantilena da vírgula antes do afeto. Isso não era próprio da natureza deles. Dois seres humanos, na minha parca concepção. O que acontece é que quando eles chegaram na Terra, o porteiro lhes disse: hoje só temos vagas para cachorros.
Juca deve ter ponderado um pouco, isso era próprio dele. Deve ter dito: “Bem, vim para servir e proteger uma casa e irmãos que há muito não vejo. Que seja como cachorro, então”. Neco deve ter ganido e replicado, nove vezes seguidas: “Não, não, isso não!!!”.
Com seu timbre estridente e seu temperamento eletrificado, o pequeno Neco seria capaz de enlouquecer uma convenção de bichos preguiça.
Juca & Neco, companheiros de viagem um do outro, que tinham somente um ao outro, pois a relação de propriedade que os humanos de fato reservam aos humanos embutidos em corpos de cachorros pode ser decepcionante no terreno da carência. Para ambas as partes. E mesmo que à segunda categoria não falte água, comida, banho, vacinas e passeio, quem está mesmo lá, segurando a solidão do Juca é o Neco e vice versa. No frio, um era o cobertor do outro. E não vá esperar você que a conjugação dos verbos no tempo certo esteja coerente porque a percepção de que essa dupla foi-se ainda claudica.
Leva tempo para que o tempo se desenlace e lhe diga: isso é passado, saiu, portanto, do plano real.
Cada um sabe de seus companheiros de viagem, e sabe que calar quanto aos defeitos dos outros é um gesto de cuidado e calar quando não há nada para falar equivale a prudência. Juca e Neco sabiam pouco de matemática e geografia, mas conheciam a fundo os detalhes relativos ao amor. Por isso falavam pouco.
Ontem, 5 de julho, foram encontrados mortos no quintal da casa onde moravam, as 7 da manhã. Quem se deparou com os corpos foi a mãe, por sinal, uma grande companheira de viagem. Jornadas trazem frutos. Coube a ela a ingrata tarefa de constatar sem aviso. Deve estar cabendo a ela, hoje, o quintal vazio, os pratos de comida e água sem serventia, a casinha desocupada no fim do quintal. Ninguém pode ir mais fundo sobre as emoções de outrem. Quanto a mim, cabe constatar que esses dois deixaram de ser meus companheiros de viagem há cerca de dois anos, por tempo limitado e sempre sujeito a Lei do Círculo, que compele as formas a encontros e reencontros. Ontem, essa possibilidade foi definitivamente excluída.
Chegaram quase juntos, partiram juntos. Uma dupla de vira latas. Sua morte, é claro, reflete o grau do distúrbio de um assassino, anônimo para nós, jamais para quem rege a Lei.
Essa tosca crônica é uma humilde homenagem a esses dois amigos. Deixam uma herança de reflexões, pelo que vivemos juntos e pelo modo como partiram. A doença que os tirou de circulação já conheço de cor e salteado: está estampada em qualquer jornal a qualquer hora. O que eles tentaram me ensinar, enquanto estivemos juntos, ainda estou engatinhando para decifrar. Foram mais do que companheiros, foram professores. Só posso lhes dizer muito obrigado, vou sentir muitas saudades e um dia hei de aprender.