À SOMBRA DA MANGUEIRA GRANDE
O corpo permaneceu imóvel, sob o lençol azulado, na mesma posição em que fora deixado. Desde o alvorecer perguntava-se sobre a possibilidade de ninguém haver percebido o que se passara ali, naquela noite. Tratado como “essa coisa”, ninguém lhe prestara vigília. Quando tiveram início os espasmos e as contrações, o dia já era quase realidade e Ele estava prestes a tomar o encaminhamento de seus afazeres costumeiros. Tinha que ser objetivo e rápido. Mal saíra do ventre, tomou-o nas mãos e com gesto brusco seccionou a coluna vertebral na altura do pescoço consumando o feito. Nenhum gemido; não, não houve tempo prá isso.
Sairia cedo naquele dia como fazia sempre.
Aqueles nove meses ficariam marcados como de eterna agonia em sua lembrança. Tempo de angústia, pavor e revolta, durante o qual não deixou de pensar sobre a solução única que o caso poderia comportar. Lamentar não resultaria em nada, afinal de contas. A decisão que encontrara cortava o mal pela raiz, dando fim à situação, antes que ganhasse o domínio público.
Não acreditava pudesse existir tamanha irresponsabilidade no caráter daquela renegada. Maldito o ventre que lhe pariu. Saíra à mãe, estava estampado em seu rosto; ainda bem que já fazia tempo que a desinfeliz se desencarnara e com certeza, àquela altura, deveria estar bem acomodada e sorridente num cantochão qualquer dos infernos, se deliciando com a sina que deixara à sua prole. Com ele seria diferente. Não toleraria mulher amancebada dentro de sua casa enquanto fosse vivo, não aceitava filho de pai desconhecido, se bem desconfiasse da autoria, o que lhe causava ímpetos de furor, e de vingança, quando o fato lhe vinha à mente.
A cerquinha de bambu com ingênua fragilidade, oferecia uma certa proteção para que não ficasse de todo exposto ao campo de visão de algum curioso. Afastou cuidadosa e mansamente a ramagem do “São Caetano”, o rastel da folhagem que cobria o chão e pôs-se a observar meticulosamente em cada quadrante do quintal, como se duvidasse ainda da possibilidade da existência de algum par de olhos por trás de alguma moita. O silêncio era absoluto. De companheira apenas a mancha de sombra da mangueira grande, esparramada pelo chão, no sentido porta da cozinha. Estava certo de que não daria motivos para disse-me-disses-suspeitos.
Demarcado o pequeno retângulo, começou a escavar numa extensão de medidas do que se poderia dizer ser uma “cova rasa”, daquelas onde se enterram os infelizes que não receberam o batismo da Santa Madre Igreja.
Encostou a ferramenta no tronco da mangueira, limpou o fio de suor que lhe escorria da face, dando por terminada a segunda parte do serviço.
Seus dias caminhavam para o final e pressentia que não suportaria a carga de inconfidências, o vexame que lhe impunha a filha, justo aquela. O que lhe fazia merecedor daquilo tudo?! Afinal de contas, sempre fora correto em suas atitudes. Seus princípios eram rigorosos. A madrugada o acompanhava desde os dias mais tênues da vida, não lhe deixando sobras de tempo para a prática de infortúnios inconfessáveis daquele porte. Construíra com sacrifício o respeito que lhe vinha desde os albores da mocidade, e se via agora a defrontar com um escândalo prestes a acontecer, bem debaixo de seu nariz. Jamais toleraria aquela ignominia.
Já não tinha mais coragem de circular pelo quarteirão. Não ia mais às missas dominicais, o que representava estar em falta com Deus. O riso lhe fugira da face larga e o seu olhar já não tinha mais brilho...
Poucas pessoas visitavam o casarão, agora sem a presença da finada, que havia deixado marcas traumáticas na formação da filharama. Inda bem que tinha ido cedo. Aquela manhã de silêncio se desenvolveu aliada a uma frieza irreconhecível.
Debruçado sobre o leito, a imagem recorrente do momento exato em que se deu a interrupção do ciclo vital percorreu-lhe os sentidos sem o mais tênue sinal de arrependimento. Onde já se viu filha sua posar de rapariga, de mulher-dama, se expor ao ridículo de boataria do diz-que-diz das esquinas, virando tema de ladainha de beatas desocupadas? Onde já se imaginou, ele, homem de estatura, respeitado pelos próceres da Relação, ter que colocar “benção” em filho de pai ignorado?
Tomou nos braços cansados de velhice, o corpo imóvel do recém-morrido, e foi na direção da vala aberta à sombra da mangueira grande. O volume trazia a aparência de um embrulho de menor importância; um monturo de coisas inservíveis; lixo. Ajeitou-o no fundo da vala e reconstituiu o terreno de forma a que não ficasse vestígio aparente. Nenhum gesto de arrependimento; nenhum sinal de fé; apenas a determinação de afastar toda especulação que pudesse advir da movimentação estranha ocorrida no casarão, naqueles últimos meses.
Como que aliviado retornou. Seus passos eram lentos e arrastados. Não saíra naquele alvorecer. Não sairia mais.
Antes que o sol saísse, e antes de ir para o avarandado do alpendre caminhava em volta da mangueira, com passo arrastado... a filha, em silêncio, fazia café...os outros saiam e voltavam com o anoitecer.
Em todos os dias que se seguiram passou-os assentado no avarandado do alpendre, recostado no batente da cancela. De longe os passantes o saudavam e recebiam como resposta um aceno de cabeça, apenas. O olhar perdido no horizonte trazia uma impressão de distancia, de ausência.
Dizem que chorava na madrugada.