Voando com meus maçaricos
Percebi o Bud silencioso, espiando atrás de mim, sobre meus ombros, tentando ler no papel em que escrevo, o titulo desta crônica.
Explico.
É que ele anda tão irreverente, tão zombeteiro, tão escarnecedor que teme – e com razão – ver na folha ainda em branco, algum dia, um título mais pomposo e de peso, tipo... Os "Ensaios Sobre os Princípios Regentes dos Desmandos da Mente Budiana.
Com certeza leu agora “Voando com meus maçaricos” porque ouvi, primeiro um suspiro de alívio e depois o baque característico de quando ele, literalmente, desmancha-se na sua predileta cadeira. É uma velha cadeira de balanço com almofadas de quadradinhos coloridos, em crochê, que fiz em tarde chuvosa e fria.
Nesta cadeira, ele... embala o espírito e afia a língua. Pronto! Penso.
É agora que ele começa:
– Não acredito! Não quero acreditar! Não! Não! – Exprime-se ele, no mais autêntico tom dramático de que é capaz.
E depois – caprichoso! – Vem uma pausa de efeito, esperando a pergunta que hoje eu não pretendo fazer! "Não acredita em quê?"
Um tanto decepcionado com meu desinteresse pela sua dramatologia, voltou à carga:
– Não quero, não posso acreditar que você – ingrata! – Tenha abandonado suas veneráveis vassouras de autotransporte, dando aí agora, para esvoaçar sentada num maçarico... (e boceja) mantido aceso, talvez, pela airosa gentileza de algum bom vento noroeste!...
Silenciei de novo agora, enfaticamente. Sempre que seja... possível fazer isso, claro. Escrevo.
Uma das mais antipáticas das minhas – e não poucas – limitações é nunca lembrar-me ONDE li e nem o NOME de quem falou ou escreveu o que pretendo citar.
E uma ingratidão e, sinceramente, leitor, espero que não aconteça isso com você também, porque gostaria que se lembrasse desse meu nome estranho.
Sim. Deve ter sido numa seleção do Reader’s Digest e versava sobre o "último maçarico”.
O maçarico é um gênero de aves aquáticas, da ordem dos pernaltas, Ou já é extinto, ou está em extinção.
O artigo contava sobre os hábitos da ave, seus caprichos, as individualidades, habitat...
Talvez não seja uma particularidade dessa espécie, mas foi no artigo referente ao maçarico, que eu soube a respeito de uma certa formação que o bando obedece, na época de migrar.
É a formação em flecha. Na ponta da flecha vai o maçarico resistente e forte; eis que o trabalho seu é o mais penoso, o mais cansativo.
Ele vai no comando, abrindo caminho!
Os outros o seguem, com menor esforço, de forma mais amena, uma vez que favorecidos pela própria movimentação do ar que, puxado para a frente, forma como que um túnel... um caminho Já aberto...!
Os maçaricos mais cansados e os mais Idosos, postam-se no final da formação.
Por um bom período, na vida de uma família, os pais são as pontas das flechas. Já vi alguns deles bem cansados, que, embora merecendo um local menos árduo, jamais puderam deixar a ponta da flecha e, alquebrados, foram abatidos pela fadiga... e, sem substitutos, na queda triste... pressentiram... o desgoverno do bando!
A impotência em forma de dor. Que modo horrível de terminar a vida...!
É Páscoa e estamos pintando uma casa.
– Leitor, nessa família isso é... perfeitamente normal, viu! – disse Bud bocejando.
– A ironia é inoportuna.
– A pintura em um dia de Páscoa, também, mas... pode continuar escrevendo. Meu filho e a esposa moraram alguns meses na nossa casa alugada em Campinas, prestando-nos um favor, quando tivemos que nos ausentar de lá.
Depois o casal, alugando uma para si, estava entregando a alugada ao proprietário... Mas... jovens de boa índole, caprichosos, quiseram deixar o imóvel como nós, os pais, o havíamos encontrado: em ordem...
Massinhas em furinhos nas paredes, cimento nas falhas do quintal; lavagem, lixamento, pintura. Estuque no forro do banheiro, onde uma infiltração havia provocado um rombo de grande tamanho...
Massa branca...
Lixa.
Pintura.
Não há pedreiros, nem pintores. Os dois jovens fazem tudo (em nosso lugar!), com as próprias mãos. Era de ver, a pequena Cristina, tão instruída, fina, a fazer os arremates nos ângulos, na mãozinha um grande pincel.
Vamos ajudar!!
Vamos lá!!
De repente, eis que todos os familiares do casal, de ambos os lados, se envolvem em frenética movimentação, entre forros de jornal (presos com fita crepe), pincéis, lixas, rolos para pintura, latas de tinta, escada e tudo o mais.
O nosso amado cão fila Peri, que circula pela casa observando isso, espantado – mas não muito – se pergunta:
– Céus, que se passa aqui?!!
Quem organiza os trabalhos, distribui serviços, recomenda a melhor forma de executá-los – e sustenta vigilância severa no controle de qualidade, é meu filho.
A ponta da flecha! Colocar esta casa em ordem com as próprias mãos tem um sentido mais profundo que pintura de paredes... é carinho pelo último teto, pelo último abrigo da família minha, completa, antes de cada um seguir o próprio destino: o filho mais velho casa-se; O mais novo, meu grande amigo, prepara-se para o futuro, na USP em são Carlos; o marido, viajando sempre; eu fico vendo navios em Santos!
A forma, pois, justa e elegante deste... feliz arremate de labor pressagia que esses jovens melhoram a edição e produzem uma colheita... bem maior que a própria semeadura!
Deus, obrigada!
Nestes momentos de pintura no dia da Santa Páscoa, eis que me chega um bom sentimento, tímido e repousante, de descontração e liberdade; de calma e sossegada gentileza, de confortável felicidade mesmo e... transporta-me para trás, para um ameno local no fundo da formação em seta... desta família que voa unida! Nada, nem nenhuma distância física dispersará o bando... que aumenta e para quem – obrigada novamente, Deus! – não existe a palavra... solidão... Se você que é pai ou mãe e não teve um momento desse – que é único, sem igual – então você tem um sentimento que é sozinho...!
Não sabe que alivio e que calor existem no coração que pode dizer!
– Meu filho assumiu... eu vou atrás, devagarzinho...
(Esta crônica eu a dedico ao meu pai, Julio Peterlevitz, que se foi deste mundo quando eu era apenas desempenada maçariquinha)