Devaneio ou Realidade?
Certa noite estava eu prostrado em minha cama, olhando o imóvel teto a rodopiar. O sono aos poucos me vinha no mesmo compasso do coro das sátiros tendo como solo a bela sereia. Meus olhos pesados iam cada vez mais cerrando, sendo levado ao fundo de meu inconsciente, como pelo Caronte pelo rio Aqueronte, indo de encontro a um pátio verdejante de grande colinas ao fundo, e meu mórbido guia ia me falando sobre a história do lugar, apontando seu dedo magro para onde queria que eu olhasse “ali foi realizada a grande batalha entre Apolo e Dionisio, por breve momento eles se combinaram, formando uma rara forma de arte, opulenta em sua beleza e magistralidade, chamaram os mortais de tragédia ática, mas um vil ser, que para muitos foi a maior mente da antiguidade fez o favor de desequilibrar a balança, destruindo tudo que se conseguiu na breve paz”, e ia me falando dos grandes eventos mitológicos, como também da titanomaquia e da ascenção e decadência dos deuses e heróis antigos. Falava tudo com uma incômoda calma que beirava a apatia.
Após navegarmos um pouco pelo rio, estranhamente calmo, bem o oposto daquilo que eu lera nos livros clássicos sobre o Aqueronte, vez ou outra o balseiro olhava-o com tristeza e saudosismo, mas sem fazer menção alguma sobre o que refletia ou pensava, ou outra coisa qualquer.
Em determinado momento o macilento guia pediu para eu olhar o alto de um monte, dizendo “olhe com atenção, o que parece ser o palco de uma guerra ancestral é o reflexo figurativo da guerra presente com toda sua intolerância e torpeza, com toda a usurpação de conceitos e valores” e no alto daquele monte escuro, que ao chegar mais perto vi serem ossos , pude ter impresso em minha retina a figura de um guerreiro todo armadurado, levando em uma mão um grande escudo e na outra uma espada banhada de sangue, mas ao ver com mais atenção notei uma palavra encravada nela “paz”. O guerreiro solitário mostrava uma frieza marmórea, e nenhum traço de seu corpo humano, pelo menos creio que seja humano, era visível, parecia-me que havia algo atrás daquela bela armadura que não deveria nunca ser visto, talvez fosse o real intento daquele ser habitando a bela veste metálica, só Deus sabe o que poderia ser aquilo.
Por um momento a balsa parou, e meu guia ainda apontando seu dedo para aquela figura estranha nada dizia, até que o chão começou a tremer e atrás daquele ser imponente surgiu um tropa de seres iguais a ele, cada qual com um estandarte portando um nome, todos banhados com sangue, alguns traziam cabeças em lanças e pedaços de corpos espetados nos escudos, em suas armas se liam “esperança”, “temeridade”, “fé”, “pátria” e outros nomes que não chegavam aos meus olhos, mas uma coisa eu via, nenhum daqueles que vieram depois eram tão altivos quanto o que ali já estava, e em determinado momento prestaram uma reverência a ele, como se louvassem um deus, até que um estrondo retumbou de suas bocas “lutemos pela paz, morramos pela paz, matemos pela paz, tudo deve ser feito em prol dela, pois somente assim teremos um futuro!!!”
Meu apático condutor com sua voz rouca e baixa, mas sem expressar emoção nenhuma face o que ouvira, vira, e ao notar meu temor, falou sentando ao meu lado “veres agora a verdade? Veres o que os homens querem? Toda paz que procuram é produto final da destruição, são como os deuses ancestrais que eles mataram por ser verem iguais a eles. O homem é Baal, é Netuno e todos os deuses que foram tachados por vós como sendo o mal, quando na verdade o bem o mal não existem, são criações de suas mentes nefastas.”
No mesmo monte, antes que a viagem seguisse, via-se essa medonha tropa invadindo vilas, destronando reis, matando todos aqueles que surgissem em seu caminho, sendo como uma broca que perfura cega uma parede, destruindo tudo a seu caminho em prol de um resultado vão e leviano. Vi crianças sendo mortas, lavouras destruídas, a terra de sangue sendo banhada. Chorei, como chorei, copiosamente, veementemente, tentei orar, mas a prece não me vinha. Era como um aviso que vinha em mim “orar não adianta de nada se não vier com alguma ação, orar por orar é mera perda de tempo, quando feita por si só.”
Seguimos nossa viagem, vi a origem e desgraça de muitos reinos e impérios, vi o mundo contemporâneo sendo criado, e pude ter um breve vislumbre sobre sua ruína. Nesse caminho torpe não existe passado, presente e futuro, tudo se funde num único ser, num único momento que meu guia chama de “era”.
Perto de um grande portão negro com detalhes escarlates vi uma grande cruz recoberta de espinhos e no alto uma inscrição INRI, mas escrita em sangue. Ao topo do portão pude ver a mesma inscrição que fora vista por Dante “Lasciate Ogni Speranza, Voi Ch’entrate” (abandonai toda esperança, vós que entrais).
Assim que os portões foram abertos vi um opulenta catedral de onde ecoava o belo som de um órgão e onde se ouviam cantos litúrgicos, que a primeira vista pense serem para agraciar a Deus. Uma bela voz, parecendo com a sereia que me seduzira ao sono belamente cantava com sua soprana voz “Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison1.” Repetindo este hino até levar-me ao êxtase, uma torrente de paz invadiu meu corpo, minha alma e minha mente, onde aos poucos se formava uma imagem que dizia “verás agora a verdade, ouvirás a verdade, sentirás a verdade.” Onde antes eu sentia paz, foi de súbito invadido pela temor e pela agonia, senti minha pele sendo chicoteada, minha mente rasgada e minh’alma gravemente ferida, quando abri os olhos, o templo ainda estava lá e entre as belas frases do hino ouviam-se gritos de desespero que diziam “sim eu me converto, aceito vosso Deus como sendo o meu, mas pelo glória que dizes que nele há tendes piedade” e em resposta era ouvido um riso lacerante.
Meu guia olhando-me no olhos disse-me “agora vês o que os filhos de seus deus fizeram? Vês toda a agonia que se encontra naqueles que são açoitados até se dizerem convertidos? Onde está o amor que dizem ser a base de seu credo, se sequer a tolerância é propagada pelo seu clero? Toda religião, todo credo é uma idéia infundada e que tende apenas ao extermínio daquele que é diferente de ti. O verdadeiro credo é aquele que diz ‘seja feliz naquilo que crês, seja feliz aceitando o outro como ele é, e acima de tudo, nunca julgues um irmão, pois não sabes se e a verdade que ele conhece é real ou uma farsa, assim como não sabes se as tuas também as são’ não fores feito para as verdades, ainda, mas sim para aprender a procurar, quando souberes isto fazer, estarás apto a abrir o livro das verdades.”
Continuando o trajeto fui apresentado as mortes causadas pela fé, e por seus excessos, e também por sua falta. Vi a falta de esperança naqueles que em nada creem, e vi o excesso de confiança naqueles que muito creem e se entregam a matança em nome de um deus que dizem pregar o amor e a esperança.
Às margens do rio sempre brotavam mais e mais igrejas, mosteiros, abadias e capelas, cada qual com seus cantos de “te Deum laudamus2” na ponta da língua, levando na mão um chicote e na outra, segurando forte como uma espada, seus livros sacros, onde buscavam justificar o motivo para tamanha covardia. O misterioso barqueiro calmamente suspirou e me falou “enquanto vós viveres assim não terás paz, nem esperança, viveram na máxima que lestes ao entrar aqui, mas nem tudo está perdido, sempre algo acontece, mas enquanto esse Deus ex machina3 não aparece viverão sempre em conflito e discórdia, vendo o outro como um estranho e uma ameaça e não como um irmão, como os grandes mestres sempre ensinaram, no fim a humanidade é como aquele aluno que sempre fica no canto da sala com chapéu de burro na cabeça.”
Seguindo mais a frente toda aquela amálgama se calava, a paz voltava a reinar, pude enfim parar para pensar, mas perto do fim desta estranha estada vi um grande relógio em minha frente marcando as horas no sentido oposto “mesmo quando parece perdido, algo sempre acontece, o Deus ex machina surge e tudo muda de forma abrupta, mas isto somente acontece na hora e momento certo, faz-se preciso que todo o campo esteja fértil para que a mais bela árvore volte a nascer, bela e perfumada como a grande lótus. Este relógio a sua frente marca algo que irá acontecer, não sei em época, este algo também não sei o que pode ser, depende do caminho que sua raça trilhar, tudo depende de vós e não dos deuses que criastes. Não importa se há ou não um Deus, o que importa é que vós existis e somente vós (humanidade) podem fazer algo. Tens o intelecto e a técnica, basta a boa vontade que irá fazer um novo dia reinar com sua paz e harmonia, mas também tens a má vontade e técnica de se afundarem ainda mais no seu lodaçal de fogo e enxofre.”
De repente tudo aquilo que eu jurava ter visto esvaiu-se em uma grande névoa gris, o barqueiro e as imagens que eu juro ter visto estão impregnadas em minha mente, mas não mais sei se realmente vi, ou se fora apenas um estranho e medonho sonho, mas talvez haja alguma verdade neste meu torpe devaneio noturno. Antes de finalmente despertar uma última frase invadiu meus tímpanos “quod aures ite missa est4.”
J 29/05/10
Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison1 - Senhor, tende piedade (de mim); Cristo, tende piedade (de mim); Senhor, tende piedade (de mim);
Te Deum laudamus2 - A Vós, ó Deus, louvamos;
Deus ex machina3 - lit. Deus surgido da máquina, sua origem encontra-se no teatro grego e refere-se a uma inesperada, artificial ou improvável personagem, artefato ou evento introduzido repentinamente em um trabalho de ficção ou drama para resolver uma situação ou desemaranhar uma trama;
Ite missa est4 - ide em paz; vão estão dispensados.