Crônicas da Esquina ( Tragédia Carioca )

UMA TRAGÉDIA CARIOCA

Os aposentados que frequentam nossa esquina são calmos. Como vestiram o pijama e já não precisam do relógio-de-ponto para provarem que estão vivos, perderam a agilidade de um Hermes que se esfola para não chegar atrasado ao trabalho. Como este não existe mais, abandonaram as velhas asas dos pés e deixam-se consagrados ao ócio.

Osmani é um desses aposentados que, durante a manhã, gosta de ler o jornal na companhia do Vitório.

Pior sorte para os que ainda labutam e, traídos pelo despertador, precisam recuperar o tempo perdido. Nessas horas, a pressa é a dos que têm fome. E, também nessas horas, o caótico trânsito do Rio é a Esfinge devoradora. Édipo morto, não haverá tábua de salvação. O enfrentamento é inevitável. Como nossos engenheiros e operários também são filhos de Deus, começam a trabalhar logo cedo. Assim, às 6:30 fecha-se um viaduto da Zona Sul para um pequeno reparo numa mureta de proteção. Como a via é de mão-dupla e, agora, precisa ser trafegada em meia pista, sinaleiros nos dois extremos da pista precisam ordenar o trânsito. Mas como pelo rádio, não se entendem quanto ao exato momento em que os veículos poderão transitar num sentido ou noutro, a coisa emperra. Mas não é só isso. No Rio, os ônibus são como Irenes convencidas do Bandeira e, sem pedidos de licença, arrancam triunfantes para o caos absoluto 50 metros à frente. Nesse momento, congestionam-se vias de acesso e linhas telefônicas. Particulares do asfalto sacam seus celulares para salvarem suas peles. Buzinaços inssurgem . Gravatas são afrouxadas a fim de permitirem passagem à saliva do destempero. Passageiros dos Coletivos enfrentam a empreitada de concluírem o percurso a pé. Helicópteros das rádios sobrevoam a Cidade e tranqüilizam impacientes patrões: pelo andar da carruagem, ninguém chegará antes do final do expediente. Ambulantes solícitos vêm trazer sua solidariedade aos detidos na forma de biscoitos, refrigerantes, água, jornais. Crianças fazem malabarismos com bolinhas para o entretenimento da população carcerária.

Às custas dos inevitáveis reflexos, o engarrafamento alcança a Radial Oeste, Presidente Vargas e Linha Vermelha. Ônibus e carros alienígenas invadem a Torres Homem, entopem-na e param. Um senhor elegantíssimo abandona sua Mercedes e, no Costa, pede um Balla 12 como quem pede uma média com pão e manteiga. Osmani gruda-lhe os olhos assustados. Tuninho chama o cronista. A televisão já registra a maior tragédia urbana de todos os tempos. Especula-se que, pelo apresentado, a marginal Tietê, em São Paulo, assemelha-se a uma ciclovia de múltiplas pistas.

Cinegrafistas, fotógrafos e repórteres de todas as emissoras atropelam-se. Uma pitada de nacionalismo tupiniquim invade as mentes mais fracas e as fazem declarar que nunca se viu nada igual desde o atentado terrorista às torres gêmeas do World Trade Center.

Os níveis de monóxido de carbono aumentam vertiginosamente. Aviões da FAB distribuem folhetos elucidativos sobre os riscos da inalação do venenoso gás. A impaciência e o pânico tomam conta dos enlatados. A cidade agoniza.

A tarde ia longe. Uma repórter do Globo Cidade pediu reforço à Polícia Militar, pois amarrados a todas as áreas de risco, os engarrafados temiam assaltos, arrastões. A Defesa Civil é chamada para resgatar uma gorda senhora que ficou entalada entre dois carros quando tentava escapar do entrevero.

A Cidade virou uma quermesse pagã. Barracas de churrasquinho e cachorro-quente avolumam-se nas calçadas de todos os bairros onde o evento acontece. Jogando com a fome alheia, os preços foram majorados e tudo é negociado a 5 reias a unidade. A economia aquece e reflete na cotação do dólar e na Bovespa que exige soluções imediatas. O Rio de Janeiro afeta o Risco Brasil.

Nesse momento, o Prefeito sobrevoa as principais áreas afetadas. Pelo celular, fala com a reportagem e pede calma à população. Procurada, a governadora não foi encontrada, aumentando o medo em seu secretariado de que, também ela, estaria encalacrada em algum lugar. O que é sempre muito perigoso. No entanto, como marido e filhos também não foram localizados, além do bispo Manuel Ferreira, o secretariado ficou mais tranquilo. Como a situação exigia medidas emergenciais, o vice-governador foi acionado. Este, no entanto, por estar de mal com o prefeito, sentia-se com as mãos e os pés atados. Afinal a idéia que não acomete a políticos, mas não escapa `a sabedoria popular. Convocou-se os dois vencedores da última São Silvestre que, em sentidos opostos, percorreram o trajeto entre os carros até encontrar o último para, a partir daí, iniciar o desatamento dos nós. Levou uma semana, mas deu certo. Agora o Rio respira aliviado e tão feliz que ninguém reparou que o reparo da mureta de proteção não foi concluído.

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 23/08/2006
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