Entre a maçã e o morango
Há tempos não chora, apesar da vontade de ter vontade de chorar, apesar da chuva, dos pingos do chuveiro, da torneira que vaza. Apesar do suor. Tentou lembrar da última lágrima, acabou rindo da própria sorte.
Só uma vela e já passava da metade, logo se apagaria. Então o escuro. Olhou em volta, os olhos doíam. Olhou as mãos, as unhas roídas. A cama junto à janela, o criado mudo com os livros: a maçã de Clarice e os morangos de Caio. Por causa dessa mania de ler na cama, o livro pesando no braço até pesar nos olhos, adormecia pensando em outras histórias que não as suas, que não a sua.
A solidão, quando cristaliza, petrifica os olhos, pensava... talvez por isso a escassez de lágrimas, apesar dessa coisa por dentro feito água encanada, casa abandonada. Ela precisava mergulhar em outros mundos prá emergir do seu.
A vela foi indo, se consumindo, se derramando sobre a escuridão inevitável. Agora tudo era uma coisa só. A casa no escuro parecia maior, ou não era mais casa, ou não era mais nada. Tudo se confundia com a escuridão sobre as calçadas, as ruas, becos, mar, rio, serra, céu... tudo tão perto, tão longe, mais alto, mais baixo, mais dentro, mais fora. No escuro perdia a noção do limite. Tão vulnerável sentiu fome, sentiu sede, sentiu agonia. O jeito era esperar até que a visão se conformasse, prá se sentir mais real, menos sombra, menos braço de um pensamento estranho, quase sonho, surreal. O que era agora senão um ponto cego tentando existir dentro de uma casa dentro de uma rua dentro de uma escuridão tão só nesse mundo derretido breu? Que pena sentiu, que dó... cadê o brilho? Concentrou-se na dor do abandono, na autocomiseração, no cristal dos olhos onde cenas mudas corriam num tempo contrário ao seu, indo embora tão perto nessa nitidez nebulosa, nessa vontade de chorar, nesse quase... parecia fácil chorar no escuro, parecia fácil esse brilho emergir assim de tão longe, de tão de dentro assim se sentindo tão do lado de fora...
De repente, a casa iluminada a protegia.
Não havia mais fome, não havia mais sede, só a agonia.
Em que mundo mergulhou?