VENDE-SE UM PARAÍSO
Sou fundamentalmente otimista quanto aos progressos conquistados por nós, bípedes implumes, ao longo dos séculos e séculos de existência nesta Terra de 4,5 bilhões de anos. Mas, tenho que reconhecer que, por vezes, nossas concepções da realidade nos são muito dolorosas, pra não dizer desastrosas.
Havia já vinte anos que não visitava o sítio que fora do meu avô, lugar onde meu pai nasceu e ali viveu por uns bons pares de anos. Na semana passada, a realidade pôs à prova um sentimento de tristeza tão profundo, que lágrimas rolaram dos meus olhos incrédulos: Onde está o velho jacarandá? E as figueiras? Quem se atreveria a cortar tantas paineiras? E as taiuveiras, onde estão? E o pomar com suas múltiplas jabuticabeiras, mangueiras, goiabeiras, laranjeiras... Onde estão as dezenas de árvores anônimas, por onde se enroscavam primaveras brancas, vermelhas e rosas?
Não reconheci o local que outrora abrigara várias casas. Pensei estar no endereço errado. Mas, o nome do condomínio, anunciado com letras garrafais, não deixava dúvidas: Condomínio Ribeirão Tijuco Preto – o sítio emprestava, ao condomínio, a única coisa que dele restou: o nome. Meus pensamentos sairam em revoada...
Cadê o ribeirão piscoso, de onde anzóis pequenos, de chumbada leve, puxaram tantos bagres, mandis e lambaris, à sombra dos bambuzais?
Meus olhos não podiam acreditar. No local, hoje, quase tudo é asfalto e concreto. Restaram apenas os velhos coqueiros e um conjunto de paineiras que tiveram melhor sorte, mas testemunharam, certamente chorosos, a grande metamorfose. Nem mesmo a velha igreja resistiu às gulosas engrenagens do progresso.
Naquele momento dei-me conta do desaparecimento do autêntico homem da terra, essa raça de gigantes que riscam o solo na ponta dos arados, alinhando milhões de culturas, irrigando seus pomares e suas hortas...
Onde estaria essa plêiade de lutadores formados por músculos de aço, crentes no poderio de sua atividade? Onde estariam esses destemidos homens que fazem do gesto de lançar a semente ao seio da terra um ato de fé na bondade divina e, ao arrancar do solo a riqueza que provém da multiplicação das sementes, suprem as necessidades alimentares de seus semelhantes?
Tratores levantavam, impiedosamente, suas bocas cheias de terra que eram despejadas nos arredores das últimas casinhas, enquanto outros compunham valas e carregavam ferro, para servir de arcabouço para mais um edifício vertical.
Não longe dali, um homem andando vagaroso entre os operários que circulavam de um lado para outro, agachou-se de cócoras para apertar, na mão, um naco de terra vermelha que escorreu entre os seus dedos, feito areia fina. Parecia enfeitiçado, como se quisesse entender através daquele gesto, o histórico de tanta gente que ali viveu, que ali nasceu e morreu...
Uma antiga moradora vem com o vento à distância, com seu vestido esvoaçado, os olhos apertados, quase fechados por causa da areia vermelha que se levantava e, ao aproximar-se de mim, diz cinco palavras brandas, carregadas de profundo sentimento: tudo um dia se acaba!
O barulho das serras rangem alto enquanto o sol míngua à força , querendo durar um pouco mais no horizonte.
Quantas histórias ouvi desse lugar, contadas por meu pai, sobretudo das espécies arbóreas ali plantadas, de cada animal ali criado, de cada cruz que marcava o fim de uma existência. Quanta história!
A realidade mudou, e nós com ela. Diante do fato consumado, do irremediável, pude, uma vez mais, testemunhar que aos poucos, o homem vai migrando para a cidade e já não precisa mais fazer a sua horta, plantar, criar galinhas, patos e porcos, cabritos e bois, pois na cidade tudo está pronto. Basta acordar de manhã, abrir a geladeira e lá está tudo o que se precisa. Se faltar alguma coisa é só ir ao supermercado, grande seio da cidade, pois lá se encontram as frutas, os ovos, os legumes, o leite, o pão, o chocolate, presunto, mortadela, macarrão, todo tipo de carne e também a cervejinha gelada.
Talvez esse homem, gigante da terra, com nervos de aço,também conectado ao quadro pintado diariamente pela mídia: aquecimento global, terremotos, inundações, furações, incêndios, ansiedade, violência, terror...tenha se cansado de lutar.
Seria esse cenário assustador o responsável por esta grande mudança? Qual será o enredo produzido por trás da cortina desses fatos?
Essas dúvidas povoaram a minha tristeza. E partilhar esse espaço precioso com você me faz acreditar que essas reflexões possam crescer ao sol da razão e, quem sabe, irrigados pela consciência de um mundo melhor, possamos ainda, colher os frutos da sabedoria e mastigá-los, saboreando-os com avidez.
Não se trata apenas de um gesto sentimental, mas fomentar princípios orientadores de um novo tempo, capaz de resgatar os valores humanos como eixo do que somos, do que fazemos e do que valorizamos. E esse deve ser o filtro pelo qual passa a qualidade da nossa percepção. Só assim teceremos a estrutura que permitirá a dissolução de fronteiras, integrando-nos ao nosso dia a dia para que, orientados por esse novo paradigma, possamos construir uma sociedade melhor e mais justa a partir da nossa própria transformação.
Oxalá possamos vislumbrar essa promessa que surge no horizonte e, com o coração esperançoso, ao resgatar valores como preservação, a não violência, a paz, a retidão,...estaremos resgatando a nossa própria identidade, contemplando os vários níveis de realidade, também, com os olhos da alma.
Assim agiu o comerciante, no poema de Olavo Bilac. Ele queria vender o seu sítio e encomendou a feitura do anúncio ao amigo e poeta Bilac:
Amigo,você que sempre me visita e conhece bem o meu sítio, poderia redigir um anúncio de venda, para que seja publicado no jornal?
Aceitando o pedido, com completa disposição, Bilac pegou o papel e redigiu o anúncio, no seu jeito de poeta:
“Vende-se um lindo sítio, afastado da cidade, onde você vai gozar descanso e felicidade. Tem pomar que o ano todo é o salão onde as aves executam seus gorjeios em sinfonias suaves e as falenas no canteiro, adejam entre as agaves. Tem, no silêncio da noite, a lua mostrando recato, quando a brisa deleitosa embala as plantas do mato e a relva dorme escutando o acalanto de um regato. Sua casa proporciona um conforto permanente e é, pela manhã, banhada nos raios do sol nascente. A varanda, à tarde, tem uma sombra envolvente...”
Terminada a redação do texto, o poeta entregou o anúncio ao amigo.
Passado algum tempo se encontraram novamente, quando o poeta perguntou:
Amigo, vendeu o sítio no valor correspondente?
O comerciante respondeu: Estimado Bilac, nem pensei mais nisso. Quando li aquele anúncio desisti, na mesma hora, de vender o meu paraíso!
Carlos Roberto Furlan
Eng.Agrônomo / Professor