O ano do tempo vago (EC)
“A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente” Joan Didion
O João, que quer ser advogado, nos pediu que escrevêssemos sobre vacation legis. Mas impôs uma condição: a expressão não poderia ser usada em seu significado real, que é o jurídico. Talvez ele nem tenha imposto. Talvez tenha apenas pedido, sugerido. Sei lá.
Não vejo, porém como aceitar o desafio sem tornar público ao público que me lê o que é que isso significa sob a pena de ninguém entender sobre o que estou escrevendo – ele explicou direitinho: é o período que permeia a votação de uma lei e sua aplicação. O período em que se descobre se a lei vai pegar ou não. Porque aqui é assim. Tem lei que pega, tem lei que não.
Pensei em muitas situações, algumas bem corriqueiras e bobocas e enquanto andava pela rua em uma quinta feira santa, quase feriado, o meu sapato começou a apertar e eu a pensar: preciso me livrar dele. Mais um que vai para o beleléu. Comecei a achar que o comércio de calçados é muito injusto com nosso bolso – a gente experimenta direitinho, anda pela loja de um lado para outro, compra porque concluiu que o sapato foi feito para o próprio pé e a primeira vez que sai com ele na rua volta para casa cheia de calos. Preciso de uma vacatio legis, pensei. E o pensamento foi se ampliando com a idéia surgida – as lojas deveriam nos permitir ficar com os sapatos uma semana para que realmente a compra entrasse em vigor. Só depois de levar os sapatos para casa e andar com ele o dia inteirinho e ter certeza de que era aquilo mesmo que queríamos é que voltaríamos a loja para confirmar a compra e pagar. Evidentemente bem antes de chegar em casa vi que essa minha sugestão nunca seria levada a sério e que era melhor eu procurar alguma coisa mais sensata para escrever. Afinal eu não poderia deixar a sugestão de um menino, mal começando a viver, impedir que eu escrevesse sobre o tema proposto. Tenho meus brios.
Mas, escrever sobre que? Sobre um tempo vago. Um tempo entre um período e outro da vida. Um período em que algo acaba e por isso é necessário que algo seja colocado em seu lugar. Um período em que precisamos deixar algo partir para que outra coisa comece.
Mas, escrever sobre que? Sobre um tempo vago. Um tempo entre um período e outro da vida. Um período em que algo acaba e por isso é necessário que algo seja colocado em seu lugar. Um período em que precisamos deixar algo partir para que outra coisa comece.
Preciso de um tempo vago para me acostumar com as novas situações da vida. Um tempo para me acostumar com as perdas, principalmente porque com os ganhos a gente se acostuma logo. Quando temos que passar a viver uma situação nova, diferente, nada parece real ou verdadeiro. Na morte, isso se chama luto – aquele período de tempo em que a nova realidade não se mostra como uma realidade, mas sim como um sonho mau, um pesadelo, algo que aconteceu com alguém e não com a gente.
Quando li o livro O ano do pensamento mágico de Joan Didion foi que pela primeira vez racionalizei sobre o luto – esse período de tempo vago que se sucede a uma perda.
No livro ela trata do ano pós morte de seu marido, o escritor norteamericano Jonh Gregory Donne e o considera como um ano em que o pensamento se ocupa de situações irreais para negar a realidade – por isso o chamou de “pensamento mágico”.
Acho porém que podemos aplicar esse conceito as mais variadas situações de perda – desde a própria morte(dos outros, é claro) a situações menos irreversíveis, como a perda de um amor,uma fortuna, ou até mais trágicas, como a ocorrência de uma catástrofe natural ou provocada. Seria aquele período de tempo em que o pensamento vagueasse entre a realidade que não queremos aceitar e as mudanças trazidas pela realidade com a qual se é necessário viver – ou seja, o ano do tempo vago, em que não conseguiriamos nos ocupar de muitas coisas porque estaríamos nos acostumando a viver sem o que perdemos e com seus efeitos.
Um período como esse pode ser vago, é até necessário que seja, só não pode ser longo. Conheço pessoas que param no tempo e nunca mais recomeçam depois de uma grande perda e utilizam esse tempo apenas para encher o coração de amargura e esperar a morte. Ou que alguma coisa aconteça, embora nada façam para isso.
Já tive alguns tempos vagos em minha vida, uns mais demorados, outros menos. Com o tempo fui aprendendo que, quando mais curto ele fosse, melhor seria. A vida é uma engrenagem que não pode parar. Como dizem por aí, é preciso sempre ter em mente que, a fila anda. E se não a acompanhamos acabamos ficando para trás. Ou sendo atropelados.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Vacatio Legis.
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