Alguém se importa
Alguém se importa
Domingo 11, e logo de manhã eles colocam uma britadeira ao pé do prédio. Caminhar para não enlouquecer, urge anotar esse título nalgum pedaço de papel. O clima atípico começou na segunda 5, para nós paulistanos um estranho refresco, para eles, cariocas, um passaporte para a dor. A Veja recém chegada na banca indica na capa o conteúdo da dor. Caminho. Tenho certeza de que essa edição estará no consultório do dentista dentro de seis meses.
Caminho para onde, quase cogito, mudando radicalmente de direção sem, no entanto, um destino prévio definido. Outra banca, outra Veja. Tudo muito rápido, há que se caminhar com precisão. Posso estar errado mas a palavra culpados tramita.
Como um pai magnânimo, indulgente, falando para um filho que cometeu um deslize: não se preocupe meu filho, os Jogos Olímpicos serão realizados aí... Foi o que disseram para a cidade do Rio, no princípio da tragédia. Vi na TV. O homem de preto quer culpados, o grande jornalista televisivo diz que agora é justamente a hora de achar culpados, é de se perguntar se vão desenterrar tumbas de dois séculos atrás e enforcar esqueletos em praça pública, com apoio de alguma marca famosa, uma bebida quem sabe, e cobertura via satélite.
Vamos caminhando. Caminhar traz indagações. Indago em que momento fiquei completamente imune a imagem de um ser humano aos andrajos, vasculhando sacos de lixo.
Caminho até o fim e então encontro uma bifurcação.
Por ali ou por aqui? Por ali, entrevejo, uma mulher descalça profere vitupérios. Carrega uma sacola e parece suja de fuligem. Prefiro por aqui. Quem terá sido? Uma musicista que estudava violino 16 horas por dia e, ao ser injustiçada numa prova de orquestra, desistiu de tudo e foi parar nas ruas? Interpretações românticas surgem durante uma caminhada dominical.
Ops, mais uma bifurcação. Por ali me parece mais arejado, há um recorte de grama, olho para os lados ao atravessar o viaduto, vê-se que a cidade é mesmo infinita, somente até onde a vista alcança. Outra banca. Gostaria de saber onde vai dar essa rua mas, ao andar dois metros, me deparo com a placa rua Eça Queiroz. Quando começo a supor tratar-se de um homônimo, quem sabe o filho de um vereador, identifico outra placa com a grafia completa. De Queiroz. Estamos em casa.
Acho que a imunidade vem com a repetição.
Percebo ainda não estar livre do pouco que vi, na TV, sobre as novas vitimas da tragédia homeopática. Permanece na minha mente a imagem do motoboy que viu a mulher e a filha serem engolidas pela terra. Ele olha para a câmera com lágrimas nos olhos e sua expressão diz: e agora?
O que as mentes oficiais tem bombardeado as mentes aturdidas com o signo da culpa e a palavra culpados está proporcional a quantidade de água e não acrescenta absolutamente nada nas existências dos que precisam existir e cujo leque de opções é um tanto estreito. Não se soube de nenhum caso, até agora, de algum sobrevivente de Niterói ter dito a equipe de reportagem que escolheu morar lá mesmo, apesar da oferta de um sobrado na Tijuca ou um quarto e sala na Urca. Na boca miúda e através de alguns comentaristas em plena TV, sobreviventes são também apontados como culpados por residirem em locais temerários.
Duas quadras pela Eça de Queiroz me mostram a paulicéia dos anos 30 no semblante de seus sobrados. Pergunto para uma mulher com cachorro onde fica a rua...porém, antes de terminar a frase, reconheço o prédio do Sesc, duas, talvez três quadras adiante. Ela faz que sim com a cabeça, como se soubesse, o que não é impossível, afinal, ambos somos munícipes. O cachorro não, mas como ele tem coleira, será poupado. Foi-se o tempo em que os cães ladravam e a caravana passava. Tenho a impressão de que hoje a caravana passa por cima. E ai de quem ladrar, cachorro ou não.
Daria um segundo dos meus pensamentos para ver/ouvir, em cadeia nacional e horário nobre, sem preâmbulos, posfácios e epílogos, o seguinte discurso: Vocês são agora a prioridade máxima. Um teto é o mínimo. Vamos começar agora, porque a vida é agora e não amanhã ou no meu governo, a cuidar de vocês como se cuida de um ser humano, cadastrado ou não. Sim, houve tragédias passadas e não fizemos nada a não ser caçar culpados – que jamais foram de fato caçados, e a distribuir migalhas e a nos enrolar em justificativas e justificativas mas agora será diferente. Agora nossas ações serão a tradução literal de: alguém se importa.
Daria dois segundos para ver alguma mudança positiva nesse comportamento que só despeja palavras professorais e gasta o meu tempo, bem menos precioso dos que estão agora chorando seus mortos e pensando em como fazer para tocar suas vidas. Três segundos, minha última oferta, para que cessem os desatinos dos incólumes e realmente se arregacem mangas para a ajuda humanitária, devida, e como, a cada um dos sobreviventes.