O depoimento da Sra. Vida
As pessoas me tem como uma amiga. Nisso eu ganho da minha irmã. Sabe, a morte nunca é tida como bem-vinda.
Entretanto meu trabalho pode ser considerado mais difícil que o dela. Afinal, meu trabalho as vezes falha, pois algumas pessoas tem o hábito execrável de cometer suicídio diante de situações insustentáveis.
A morte nunca falha. Ou quase nunca... Com exceção das vezes em que brigamos pela alma de alguém. Daí fica aquele vai e vem que a pessoa não aguenta, e na maioria das vezes até entra em coma.
Costumam achar que a Vida e a Morte são inimigas. Mentira! Intriga! Eu e minha irmã nos damos muito bem. Essa história de ceifadora impiedosa é papo furado. Os humanos é que não tem o hábito de conversar com ela.
Posso definir meu trabalho de uma maneira mais fácil à compreensão de todos: é como se eu publicasse um livro em branco, que ainda será escrito por outra pessoa, e eu esperasse ansiosa para que o livro se torne um best seller.
Alguns se tornam grandes sucessos sim, mas a grande maioria fracassa, e daí vem os insultos e rejeições a minha pessoa: “Essa vida é uma merda”; “A vida tá uma porcaria”; “Eu não aguento mais a vida”, etc...
Sim, as pessoas sempre são ingratas. Todas.
Eu passo toda a existência ao lado delas e no final o que eu ganho? Nada. Ninguém nunca reconhece meu trabalho. Quando alguém parte, só vejo lágrimas e só se fala na Morte. Mas em nenhum momento abrem a boca para me agradecer. Esquecem que quem deu duro a vida inteira do sujeito fui eu.
Mas sabem na verdade o que realmente me irrita? É quando minha irmã age feito uma criança. As vezes estou ao lado de alguém, tranquila, e de repente vem ela e tira a pessoa de mim, sem mais nem menos. Morte súbita é como chamam. Morte pentelha é como eu digo. Só que acham que eu deixo por menos? Ah, não senhor. Sacaneio com ela também.
Quando ela tá levando o cara, e todos estão desacreditados, lá venho eu e dou um peteleco na orelha da minha irmã e pego o cara de volta. A Morte fica estressadinha, igual criança birrenta, mas eu comemoro, e as pessoas também: chamam isso de um milagre.
Pois é, Milagres. As pessoas só se dão conta da ocorrência deles nesses momentos, mas nem percebem que a cada segundo ocorre um pequeno milagre. O nascimento de um bebê num parto de risco, a cura do câncer em alguém desenganado, uma mãe que sustenta seus filhos sozinha, alguém que abandona o mundo das drogas, o simples desabrochar de uma flor numa manhã ensolarada de setembro. Todos esse são pequenos milagres que ocorrem a todo momento, impulsionados por algo oculto e misterioso, que se manifesta sem deixar rastros.
Sabe, a vida é assim mesmo. Muitos gostam dela, outros a abominam. No final, a Vida e a Morte saem de mãos dadas, admirando àqueles que tem a dádiva da existência. A eternidade é uma loucura, e eu e minha irmã dariamos tudo para simplesmente termos um início e um fim.