Sofredor de Carteirinha

Sofredor de Carteirinha

Ele exibia a carteirinha, chamando atenção para a foto. As pessoas, quando se dispunham a olhá-la, não raro assim procediam:

- Nossa...que cara de sofrimento. É você mesmo, nessa foto?

- Sim, sou eu – gabava-se ele.

- E você sofreu tudo isso?

- Tudinho. Um parto...- respondia ele de peito enfunado – é que...eu sinto as coisas...intensamente.

Outras pessoas aparecem para espiar. Sempre acontece assim. Em geral, desocupados. Olham a carteirinha e se admiram com os detalhes, tais como a retícula meticulosa da Agência dos Sofredores ou o garboso carimbo com a chancela do Ministério do Sofrimento, examinam a data da matrícula em letras graúdas, vermelhas, e a data de validade, em corpo muito menor, em tinta preta esmaecida.

- Você pagou para tirar essa carteirinha? – indagou uma senhora de sombrinha.

- Com meu sangue, meu suor e minhas lágrimas – atestou ele.

A amiga da senhora, com óculos fundo de garrafa e vestido estampado, evidentemente outra desocupada, indaga:

- Você perdeu muito sangue?

- Perdi lágrimas – retorquiu o sofredor – cada lágrima que vou te contar. Se tivesse perdido muito sangue, não poderia continuar sofrendo.

As pessoas assentiam, compenetradas, e a carteirinha rodava de mão em mão.

Ele falava com o ar da falsa modéstia, não para alguém em particular, mas para uma platéia invisível que só ele via.

- Sofri muito, muito mesmo...- e um tênue acento nas vogais dava uma atmosfera compungida à sua face.

Um homem muito velho, provavelmente outro desocupado, examinou a carteirinha e disse:

- É verdadeira. Meu sobrinho teve uma dessas.

- Tenho outras fotos de sofrimento – adiantou-se o sofredor, sacando do bolso um maço de fotos como se fosse um baralho.

- Nesta aqui – dizia ele – oh, vocês nem queiram saber o que me aconteceu nesse dia...

As pessoas olhavam as fotos com menos interesse do que a carteirinha. Uma criança surgiu do nada, olhou a carteirinha e exclamou:

- Meu pai tem uma igual.

O sofredor ficou lívido.

- Você sabe – disse o velho, pensativo, sem largar a carteirinha, o que enervava os outros curiosos – meu sobrinho acabou tendo sua carteirinha suspensa. O Ministério descobriu que ele tinha problemas mentais. Sofria porque, ao ver uma formiga, pensava tratar-se de um elefante.

- Coitado...- suspirou a senhora de vestido estampado – perdeu todos os benefícios...

Outros suspiravam, pesarosos. Alguém disse “oh céus”. A carteirinha circulava.

- Ei! – exclama um rapaz, olhando o documento e fazendo contas com os dedos. Com certeza, mais um desocupado – expira amanhã!

- Amanhã?! – todos exclamaram, com um ar de desolação. Alguém repetiu “oh céus”.

- Sim – disse o sofredor, pendendo a cabeça para o lado – só tenho hoje para sofrer.

Um silvo de consternação geral sibilou entre os presentes.

- Você não pode renovar? – indagou a senhora dos óculos fundo de garrafa.

- Não sei se conseguirei – disse ele – são tantas taxas. Mas hoje sofrerei bastante.

Alguém lhe perguntou por que não falsificava uma carteirinha.

- Sim, isso mesmo! – exclamaram – todo mundo falsifica carteirinhas.

O sofredor explicou que havia pensado no assunto, mas ouvira dizer que o sofrimento não seria o mesmo. E depois, tinha a questão da foto. Ninguém iria acreditar que aquela carteirinha pudesse ser falsa, com uma foto daquelas, que demonstrava tanto sofrimento.

Ficaram horas e horas nesse debate.

Um bando de desocupados.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 05/04/2010
Reeditado em 29/11/2012
Código do texto: T2178614
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