SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO.
Por Carlos Sena



 



Sexta-feira da paixão. Na minha pequenina Bom Conselho de Papacaça, onde me encontro, o comércio fecha, as escolas, mercados, tudo. As igrejas, não. Hoje é dia de procissão do senhor morto, de vigília, de matracas substituindo o toque dos sinos. Amanhã, sábado de aleluia, todo o ritual será mantido com nos meus tempos de criança. Claro que muita coisa mudou, foi abolida, porque faz parte do processo da chamada modernidade. Mas o principal não mudou: a fé da grande maioria da população. Aqui não se come carne desde ontem e muitos não comerão até amanhã. O feriado da paixão é um dos mais levados a sério, inclusive deixando a cidade, literalmente, parada nesta sexta-feira SANTA. Neste dia, os pais não batiam nos filhos, mas os meus diziam que “bater, não, mas CALCAR, beliscar, sim”! Não sei se hoje os filhos tem esse álibi, mas era assim que os pais faziam talvez induzidos pela corrente autoritária da igreja católica para quem “poucas e boas, devagar que doa”, fosse a pedagogia indicada.
Daqui a pouco a procissão vai sair pelas ruas com a imagem do Senhor Morto sendo carregada pelas ruas, sob o som da matraca e dos hinos lúgubres em forma de réquiem que depressão nenhuma pode botar defeito. Gosto dessa procissão pelo gestual que ela mantém: os pecados capitais desfilam em pelotões coloridos, em conformidade com o que se imagina que as cores simbolizam; anjos, “Maria Madalena”, apóstolos, senhoras da Legião de Maria, completam o time de desfilantes. Junto à imagem do Senhor Morto, o Monsenhor, pois minha terra não tem bispo, contritamente, comanda a procissão. Um carro de som geralmente vem na frente transmitindo as orientações da procissão e entoando os cânticos. Talvez seja um dos maiores momentos de concentração de pessoas que a cidade reúne. Nem quando um político importante vem por aqui, reúne tanta gente.
Talvez seja um bom momento para as autoridades católicas pensarem em recuperar o rebanho para as novas igrejas e seitas que estão disputando o mercado da fé. Principalmente depois de tanta denuncia de pedofilia, inclusive, colocadas para debaixo do tapete pelo nosso PAPA quando arcebispo. Por conta, também, da na nossa vizinha Arapiraca, colocada no noticiário nacional com casos de pedofilia comprovados. Enquanto isto, a igreja católica continua querendo tapar o sol com a peneira, imaginando, talvez, que nós, pecadores, não estamos mais querendo saber da relação entre teoria e prática. Porque talvez tenha sido aí que as igrejas se perdem em si mesmas. Não basta, pois, dizer que está salvo quem opta por determinada religião. Salvo deve estar quem tem o coração sem maldade e prova isto no dia-a-dia com os seus semelhantes. Esta pratica, infelizmente, não é corrente nas igrejas, muito menos na nossa Romana, Apostólica!
O dia de hoje me leva a esta reflexão, porque o tempo está para introspecção dos valores que deixaram de ser monitorados por quem de direito, principalmente pela família e as igrejas. As primeiras, deixando os filhos se “educarem” pela TV e a segunda, pela relação forte com o capital e pela incoerência entre muita teoria e pouca prática. “Neste dia, oh Maria, nós te damos nosso amor! Este é um trecho de um hino católico dos meus tempos de criança, mas ainda hoje vivo nas procissões. Valho-me dele para complementar minha caminhada nesta via sacra que é conviver com um país desigual; um país que dá audiência a um BBB – Big Brother Brasil – verdadeira réquiem à putaria, à sacanagem, ao estabelecimento da lei da vantagem e do lucro fácil pelos meios de comunicação; ao estímulo à falta de ética e de amor nas relações interpessoais. Outro hino que ainda me lembro: “Senhor Deus, Misericórdia”! É de quem me valho nesta tarde, enquanto a procissão não começa: misericórdia, senhor, pela lama moral que nossos políticos teimam em conservar; misericórdia, senhor, pela violência que assola nosso país e pela justiça que só vê quem tem dinheiro quando deveria ser cega; misericórdia, senhor, pelas crianças que não tem escola digna; pela grande maioria da população doente, para quem os SUS se constitui num faz-de-conta, pois os nossos dirigentes têm planos de saúde privados; misericórdia, senhor, pela inversão de valores motivados pelo consumo de bens materiais; pela falta de solidariedade entre irmãos, pela falta de amor ao próximo cada vez mais acentuada, amém.



PROCISSÃO - Gilberto Gil - Composição: Gilberto Gil

Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu

Eles vivem penando aqui na Terra
Esperando o que Jesus prometeu
E Jesus prometeu coisa melhor
Prá quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na Terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano e nada vem
Meu sertão continua ao Deus dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na Terra isso tem que se acabar


csena51@hotmail.com