A malhação do Judas (EC)
 
Eu esperava ansiosamente o dia de malhar o Judas. Sábado da Aleluia. Isso quando eu era bem criança e vivia em Arantina. 
Eu morava em uma casa de esquina, com uma varanda em L. Um dos lados de minha casa dava para a Praça do Cruzeiro, se é que se podia chamar Praça a forma geométrica esquizóide ladeada de casas com um cruzeiro de madeira plantado no meio. Era ali que a cerimônia acontecia. A única de toda a semana Santa. Eu tinha parte de uma varanda e duas janelas para assistir a Malhação. Se conseguisse lugar porque os espaços eram disputados. Eu morava na casa, mas era criança e criança naquela época não podia quase nada. 
Montava-se um espantalho vestido com roupas masculinas normais. Roupas do próprio tempo, não do tempo de judas.O Judas podia ser o Judas, o Iscariotes. Ou alguém, herdeiro do seu estigma. Primeiro havia o julgamento, a condenação. Depois alguém iniciava a leitura do Testamento do Judas, quando ele ia doando tudo o que tinha para as pessoas do arraial. Para fulano deixo minhas calças porque.... Para beltrano a minha Lígua para... e Sicrano ficará com meus sapatos já que... e assim por diante, cada doação tinha um motivo jocoso que fazia todo mundo rir.Ou ficar furioso. 
Visto assim de tão longe nem dá para contar com detalhes. eu só sei que depois da leitura do testamento se malhava o judas e punham fogo nele. Adorava ver as labaredas consumindo o espantalho e achava bem feito ele arder no fogo do inferno. Afinal tinha traído Jesus. Por trinta dinheiros. Eu não sabia exatamente o valor de trinta dinheiros, mas achava que era pouco ganho para muito castigo.
A figura de Judas ficou para sempre marcada em minha mente. Foi nessa época que aprendi uma lição: não se trai um amigo. No começo era um conceito simples. Com o tempo ele foi se sofisticando. Criando raízes profundas. Trair. Quebrar a confiança que alguém depositou em você, seja lá quem for esse alguém. Um membro da família, um amigo, companheiro de trabalho ou de ideal. Um amor. A menos que esteja preparado para sofrer as penas do inferno. Principalmente as do inferno interior. Esse é o fogo que mais temo. Aquele que arde por dentro quando se compreende o erro e nada mais há a fazer.
Não tenho religião. Observando hoje sei que a religião conseguiu enraizar em mim conceitos nefastos dos quais custei a me livrar. Se é que me livrei. Mas por outro lado conseguiu também incutir valores morais dos quais me orgulho.  
Mas interessante frisar que embora eu achasse linda as chamas subindo em direção ao céu, sempre me incomodou imaginar que punições físicas pudessem acontecer por pior que fossem os crimes. Mesmo sendo o de traição. Bem cedo eu pensava que malhar e queimar alguém fosse um ato que o filho do carpinteiro que também era criatura de deus, como nós, fosse aprovar. Com o tempo a brincadeira de Judas acabou perdendo a graça para mim. 
Outra coisa que me aborrecia era a burrice de Judas. Ele se arrependeu e em vez de viver para expiar o seu crime o burro se condenou. Lançou-se as chamas do inferno com as própria mãos. Isso eu pensava na época e penso ainda. Judas foi um duplo covarde. Traiu e Fugiu. Se enforcou porque não conseguiu viver com a própria consciência.Deveria ter continuado a viver para se redimir. Esse é o maior castigo – viver com a própria consciência gritando – Traidor. Mas era o único jeito que ele tinha para se perdoar. Porque esse é o único perdão que conta – aquele aplicado pelo próprio agente da culpa.Ser perdoado pelo deus dos Cristão é moleza. Difícil mesmo é ser perdoada pela divindade que vive em nós, como fragmento do Todo.
Foi bom escrever sobre essas lembranças. Uma ponte unindo passado e presente, revisão de conceitos. Nunca mais assisti a uma malhação de Judas desde que nos mudamos de Arantina. Nem mesmo sei se o costume ainda perdura por lá. Mas me lembrei dele e isso devolveu parte de mim a mim mesma.
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