Quem me viu, quem me vê!
 

          Remexendo guardados, alguém encontrou uma foto minha de quando tinha por volta de um ano de idade. E lá estava eu rechonchudo, aboletado no chão de terra do antigo quintal, ostentando uma chuca-chuca no topo da redonda cabeça. Com tudo isso, mesmo assim, não consegui ver ali uma figura infantil. O tom era sóbrio e o olhar desconfiado.

          Alguém poderá cogitar que nasci ranzinza e, se isso não é uma verdade – ainda hoje, não passa de impressão enganosa – eu parecia pressentir o que Guimarães Rosa dissera poucos anos antes, ou seja, que “viver é negócio muito perigoso”. A bem da verdade, em “Grande sertão:veredas” ele também registrou: “Eu não sei de quase nada, mas desconfio de muita coisa.” Porém, sem dúvida nenhuma, naquela época eu não sabia ler, porque isso só ocorreria três anos depois daquele instante fotográfico.

          Desde então, o tempo veio encobrindo a infância aos poucos, despejando a cada dia uma camada fina de vivências, sobrepondo, ano a ano, esse aterro gradual com que a experiência soterra a ingenuidade. A gente nasce com a propensão de crer que tudo é possível e é o cinismo humano que nos ludibria ao convencer-nos do contrário, fazendo com que a fantasia seja subjugada pelo ceticismo.

          Passado quase meio século, desde o registro daquela imagem, o bebê parrudo tornou-se um senhor robusto e à minha volta os chãos de terra ficaram mais escassos, assim como os cabelos que já não se permitem amoldar em tufos. A vida não tornou-se menos perigosa, mas agora que já aprendi muito, desconfio que ainda há muito por saber. A sobriedade consolidou-se como traço de caráter, porém meu olhar, enfim, desabrochou na meia-idade com o brilho infantil que me fugia naqueles tempos, porque depois de encontrar muitas pedras no caminho, já fui e voltei várias vezes de Pasárgada, vivi com sobras os amores infinitos enquanto duram e, sem dúvida, agreguei a plena consciência de que tudo realmente vale a pena se a alma não é pequena.


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