No meu tempo (EC)
No meu tempo (EC)
No meu tempo está a Arte, acima do artista. Catalisando experiências passadas e projetando-as para o futuro, a Arte debruça-se sobre si mesma e o ego do artista é somente o canal.
Em seu tempo, Buonarroti olhou para a pedra e disse: eu vi o anjo dentro dela, então comecei a esculpir e a esculpir, até libertá-lo.
Artistas. Fazem cada uma. Nos pregam cada peça.
Não param quietos.
Quando não ficam em silêncio, estão a caminho de lhe mostrar alguma novidade. Precisam do silêncio para captar e ao mesmo tempo não podem silenciar. Quando silenciam, decerto já cumpriram sua parte no trato. E se por ventura, ao cabo do ciclo, se encontrarem na miséria, não irão se queixar nem por um momento da intensa atividade que os levou a criar. Artistas sussurram o mote da Arte, e não contam pra ninguém:
“É preciso medir a verdade segundo nossas inteligências, velá-la aos fracos e escondê-la dos maus, que poderiam enlouquecer ou se apoderar de fragmentos, e com eles trazer má fortuna ao mundo da forma”.
Artistas. Tem mais ferramentas do que se supõe, e estão à espreita, à espera, mostram o diverso que há em tudo, pois tudo é diverso, ao contrário da estupidez, que é homogênea.
Buonarroti foi mais conhecido pelo seu pré nome, Michelangelo. Todos são equivalentes e servem ao futuro paladar que virá de encontro. Os que acreditam que uns são maiores ou melhores do que os outros estão enganados, redondamente enganados e deixam de perceber que a luz da tarde rodeia toda a folhagem, segurando-a, como a mão do Criador segura todo o Universo.
No meu tempo, a Arte desprezava fronteiras e se reclinava, como um potentado oriental, observando com prazer o labor de seus artesãos.
Egberto, e aqueles instrumentos todos. Hermeto, e aquela voracidade toda. Chico Gomes, e aquele violão com vida própria, Stanley Kubrick, e a refinada plasticidade, típica de quem elabora um reino, João das Couves, o espírito anônimo que costura a história dos esquecidos, animando cada vulto que busca a expressão.
De que adiantariam mais nomes, se no final eles irão servir para perfilarem-se na Grande e Supérflua Escala de tantinhos, que faz empenho ao fugaz discernimento de um e outro? Por que Pixinguinha seria melhor ou pior do que Stan Getz, se na hora que eles sopravam seus Si bemóis, não o faziam senão para o ouvido receptivo?
Artistas. Dê-me uma moeda e o farei supor um Bem-te-vi na sua janela.
Identificar o Princípio Inteligente Criador, eis a façanha dessa casta.
Pergunte aquela mulher, que morreu louca e na miséria num pensionato mambembe no centro de São Paulo, se ela trocaria dois segundos de sua vida, uma vida nos palcos em teatros pequenos, em cidades pequenas, mais as gargalhadas de madrugada, o sabor de uma platéia tensa, o dissabor de um público vulgar, a recompensa de uma ovação à altura. Pergunte para ela se no frigir dos ovos, se na hora da escolha, ela voltaria atrás ou teria hesitado. Nem por uma fração, ela lhe responderá, depois de rir fartamente, lembrando da vida que teve e das lágrimas que arrancou dos presentes, nos dramas e comédias que encenou.
Por que aquele homem que entalha tabuinhas com a figura de um saci, seria diminuído face a Arte, se comparado com Buonarrotti, já que ambos tiveram de se esforçar bravamente para distinguir o Princípio Inteligente Criador, escondido por trás de suas futuras expressões? A Arte bem sabe que ambos lidaram com limitações.
Decerto, o violeiro do boteco, preguiçoso, ao extrair três acordes para trazer à tona uma modinha, com uma vírgula de desafinação, não pode ser comparado ao Egberto mas pode, no seu tosco asseio estético, enternecer um coração mais próximo. E nem todos os lares acatariam com transbordamento de felicidade um mármore renascentista.
A busca da Arte é capturar a si mesma. Quando isso acontece, ela se compraz. Significa que derreteu um coração. Quando um coração se alivia e uma mente se expande, ela existe plenamente.
Salvador Dali sofreu, durante anos, de um riso histérico que o acometia e que durava dias e dias, quase que ininterruptamente. Ele era incapaz de frear. Parece que o que lhe amainou foi o surgimento de Gala, sua companheira. Mesmo assim, a obsessão pelos pincéis, pelo desbravamento do que tinha de ser desbravado, teria continuado de qualquer forma, para seu maior ou menor sofrimento, pois
“todo homem sabe a imensidão da fome que tem de viver”. Um ou outro, se for artista, vai mensurar no íntimo, o tamanho da dor de seu parto.
Pergunte àquele sujeito, que fazia sonetos na Inglaterra, ou àquele outro, que tecia versos em Portugal, se eles abdicariam de suas missões, por um diploma na parede e refeições certeiras. O segundo, já ouso até lhe afiançar, lhe diria sem pestanejar: “em tudo que fizeres sê inteiro, como a lua lá no alto brilha em cada poça”.
Sacerdotes, eis o que são, mas não o fazem pelo próximo, fazem, porque senão o fizessem, não morreriam delirantes e felizes.
Artistas. Estão sempre proclamando que o verdadeiro é falso e o falso verdadeiro. “A vida é amiga da arte”.
Dê-me uma moeda e eu tiro uma melodia fresquinha da cartola. Lá na frente, vamos descobrir que a moeda é uma mentira. Eu tiraria a melodia de qualquer jeito. Talvez até lhe desse uma moeda.
Artistas. Subjetivos, predestinados, mal vistos, ridicularizados, endeusados, talvez o público não seja tão amigo da arte, talvez a arte seja amiga do tempo, o que não funciona hoje pode enternecer no amanhã. O artista sabe. Quando isso clareia na mente dele, já lhe é possível encarar a próxima etapa. Então silencia. Trata-se de um hiato entre os movimentos.
Em qualquer tempo, a Arte deve gerar suficiente emoção para suplantar eventuais déspotas.
No meu tempo, a Arte governa. E todo artista conhece o mote:
“Encerra a verdade em teu coração e que ela fale por tua obra. A ciência será tua força, a fé tua espada e o silêncio tua armadura impenetrável”.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - No Meu Tempo.
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