Orelhas
Eu não me lembro quando foi. Não lembro a idade que tinha. Nem mesmo sei se a imagem que trago na mente é verdadeira ou se foi transformada pelo tempo. Uma fantasia. Mas o vejo como um gigante vestindo uma capa de boiadeiro. Em minha casa, ele, o Tio Zé, irmão de meu pai. Mais se aproxima da fantasia que da realidade. Nunca ouvi dizer que tivesse sido boiadeiro. Nem que fosse um gigante. Não sei o que estava fazendo lá. Talvez tenha sido uma das vezes em que foi em busca de dinheiro para movimentar um sonho – a herança do Barão de Cocais de quem se dizia éramos herdeiros. A fabulosa riqueza da mina do Morro Velho que jazia enclausurada em cofres de bancos ingleses. Não sei. Mas nada disso é importante, hoje. Só as orelhas importam. As gloriosas e enormes orelhas de meu tio José Lybnitz das quais eu não conseguia desviar os olhos. Ou seria do meu tio Jacinto, também chamado Cunha? Pois nem isso sei com certeza, de quem eram as orelhas de elfo.
Por favor, não pense que perdi todo o senso e medida só porque estou escrevendo sobre orelhas. É uma parte da anatomia feminina que nem mesmo é muito aparente a não ser que se use penteados específicos. Tranças. Coques. Marias- Chiquinhas ou cabelo Joãozinho. Ou ainda rabos de cavalo. Mas as orelhas de um homem, ah, como aparecem! Elas são bem visíveis e mudam completamente sua fisionomia. Até acredito que seja uma das plásticas mais feitas por eles, embora não confessem nem para os amigos de infância. (Você está enganado, nunca tive orelha de abano). E usem durante toda a adolescência gorros, seja verão ou inverno. (Não, não eu, era meu irmão) Mas as orelhas de meu tio não eram de abano, eram apenas enormes. Como as do lobo mau. Carnudas e cabeludas. Em minha visão de hoje a medida correspondente seria uma mão (Não um mamão). Minha mão bem aberta, considerando a distância da ponta do Polegar a ponta do Fura Bolo. E essa visão das orelhas de meu tio José (ou seria do Cunha?) mais especificamente a orelha direita que estava em linha reta com a linha que saia dos meus olhos, essa visão já teria esmaecido há muito tempo não fosse a informação a mim repassada: orelhas nunca param de crescer. Você começa a diminuir com a idade mas as orelhas nunca diminuem. Sempre aumentam de tamanho. Vão ficando pontudas, tanto pra baixo quanto pra cima.
Pois fui olhar minhas orelhas. A esquerda e a direita. Um primor, obra prima da genética. Uma belezura. Sem dúvida nenhuma a parte mais bonita de mim. Pequenas. Bem feitas. Delicadas. Os lóbulos macios, presos, não balançando como se tivessem sido arrancados por tantos puxões. Não, as minhas orelhas nunca seriam como as do meu tio. Certamente que não. E eu passei grande parte da vida vigiando-as sem notar nada de anormal. E tão normais e especiais elas eram que com o tempo passando e a vida enchendo minha mente de novos interesses e preocupações, acabei esquecendo - me delas. Passei a dar maior atenção ao nariz, que também ameaçava a simetria de meu rosto e não tinha jeito de esconder.
Mas hoje, frente ao espelho, talvez buscando consolo pelas deteriorações causadas pelo tempo, resolvi examiná-las na esperança de revê-las intactas.
Não, elas não estão tão grandes como as dos meus tios Jacinto ou Zé. Ainda. Mas cresceram. E eu fiquei apavorada. Como fui me descuidar tanto tempo delas?
Na orelha esquerda três pintas pálidas que eu ainda não tinha notado. E o mais intrigante, há, em cada uma delas, um traço como se fosse uma cicatriz, um traço vertical, bem no lóbulo, passando sobre a laceração feita para pendurar meus brincos. Como ele foi parar ali? Como se eu tivesse grampeado cada uma delas e depois de muito tempo retirado o grampo ficando só a marca, como ficam as marcas de grampo no papel.
Não, eu não vou suportar o tempo passando e minhas orelhas crescendo. Ainda bem que posso cobri-las com o cabelo (Se é que eles não vão cair também). E se isso acontecer (a questão dos cabelos) vai ser impossível impedir minha orelhas de alçar vôo. Como uma borboleta ensandecida.
Lavras, 26 de fevereiro de 2010)
Eu não me lembro quando foi. Não lembro a idade que tinha. Nem mesmo sei se a imagem que trago na mente é verdadeira ou se foi transformada pelo tempo. Uma fantasia. Mas o vejo como um gigante vestindo uma capa de boiadeiro. Em minha casa, ele, o Tio Zé, irmão de meu pai. Mais se aproxima da fantasia que da realidade. Nunca ouvi dizer que tivesse sido boiadeiro. Nem que fosse um gigante. Não sei o que estava fazendo lá. Talvez tenha sido uma das vezes em que foi em busca de dinheiro para movimentar um sonho – a herança do Barão de Cocais de quem se dizia éramos herdeiros. A fabulosa riqueza da mina do Morro Velho que jazia enclausurada em cofres de bancos ingleses. Não sei. Mas nada disso é importante, hoje. Só as orelhas importam. As gloriosas e enormes orelhas de meu tio José Lybnitz das quais eu não conseguia desviar os olhos. Ou seria do meu tio Jacinto, também chamado Cunha? Pois nem isso sei com certeza, de quem eram as orelhas de elfo.
Por favor, não pense que perdi todo o senso e medida só porque estou escrevendo sobre orelhas. É uma parte da anatomia feminina que nem mesmo é muito aparente a não ser que se use penteados específicos. Tranças. Coques. Marias- Chiquinhas ou cabelo Joãozinho. Ou ainda rabos de cavalo. Mas as orelhas de um homem, ah, como aparecem! Elas são bem visíveis e mudam completamente sua fisionomia. Até acredito que seja uma das plásticas mais feitas por eles, embora não confessem nem para os amigos de infância. (Você está enganado, nunca tive orelha de abano). E usem durante toda a adolescência gorros, seja verão ou inverno. (Não, não eu, era meu irmão) Mas as orelhas de meu tio não eram de abano, eram apenas enormes. Como as do lobo mau. Carnudas e cabeludas. Em minha visão de hoje a medida correspondente seria uma mão (Não um mamão). Minha mão bem aberta, considerando a distância da ponta do Polegar a ponta do Fura Bolo. E essa visão das orelhas de meu tio José (ou seria do Cunha?) mais especificamente a orelha direita que estava em linha reta com a linha que saia dos meus olhos, essa visão já teria esmaecido há muito tempo não fosse a informação a mim repassada: orelhas nunca param de crescer. Você começa a diminuir com a idade mas as orelhas nunca diminuem. Sempre aumentam de tamanho. Vão ficando pontudas, tanto pra baixo quanto pra cima.
Pois fui olhar minhas orelhas. A esquerda e a direita. Um primor, obra prima da genética. Uma belezura. Sem dúvida nenhuma a parte mais bonita de mim. Pequenas. Bem feitas. Delicadas. Os lóbulos macios, presos, não balançando como se tivessem sido arrancados por tantos puxões. Não, as minhas orelhas nunca seriam como as do meu tio. Certamente que não. E eu passei grande parte da vida vigiando-as sem notar nada de anormal. E tão normais e especiais elas eram que com o tempo passando e a vida enchendo minha mente de novos interesses e preocupações, acabei esquecendo - me delas. Passei a dar maior atenção ao nariz, que também ameaçava a simetria de meu rosto e não tinha jeito de esconder.
Mas hoje, frente ao espelho, talvez buscando consolo pelas deteriorações causadas pelo tempo, resolvi examiná-las na esperança de revê-las intactas.
Não, elas não estão tão grandes como as dos meus tios Jacinto ou Zé. Ainda. Mas cresceram. E eu fiquei apavorada. Como fui me descuidar tanto tempo delas?
Na orelha esquerda três pintas pálidas que eu ainda não tinha notado. E o mais intrigante, há, em cada uma delas, um traço como se fosse uma cicatriz, um traço vertical, bem no lóbulo, passando sobre a laceração feita para pendurar meus brincos. Como ele foi parar ali? Como se eu tivesse grampeado cada uma delas e depois de muito tempo retirado o grampo ficando só a marca, como ficam as marcas de grampo no papel.
Não, eu não vou suportar o tempo passando e minhas orelhas crescendo. Ainda bem que posso cobri-las com o cabelo (Se é que eles não vão cair também). E se isso acontecer (a questão dos cabelos) vai ser impossível impedir minha orelhas de alçar vôo. Como uma borboleta ensandecida.
Lavras, 26 de fevereiro de 2010)