PTESIOFOBIA
Nunca tinha ouvido falar antes em ptesiofobia. Admiro como foram inventar uma palavra assim tão feia. Não tem nem a graça das trágicas nem o ópio das misteriosas. Ptesiofobia. Se visse essa palavra isolada, meu primeiro ímpeto seria imagina-la como uma designação às pessoas que têm fobia do PT. Ou exatamente o contrário. Ou inexatamente o contrário.
Para meu alívio não tem nada a ver com o PT. Posso dormir em paz. Ptesiofobia, acreditem, é o termo científico para designar o medo de viajar de avião. Acredito que a ciência se diverte em nos imaginar tentando desvendar a alma de algumas palavras.
Nunca andei de avião, ou melhor, dizendo: nunca voei de avião nem de qualquer outra coisa, sobretudo os urubus. Mesmo sendo um sujeito genuinamente terrestre, descobri que sofro de ptesiofobia. Suponho ser além de poeta e peão, um ptesiofóbico inédito. O termo para designar a nossa classe parece saído do dicionário de Nelson Rodrigues.
O avião, que me desculpe Alberto Santos Dumont, meu conterrâneo, é uma máquina injusta. Um dia li no jornal que um rapaz saiu do sul com destino a São Paulo, onde sua noiva lhe esperava no altar, para juntos subirem as atribuladas escadas da vida. O avião não avisou que teria que cair e o moço não pôde avisar sua amada que teria que morrer. Foi um fato que causou muita chateação. Acho que o avião deveria vir equipado com alguma garantia contra esse tipo de imprevisto. O rapaz transformou-se numa carbonizada hipótese. A moça chorou todas as lágrimas de sua juventude, gastou até a umidade que garante um lustro aos olhos. Uma família foi abortada. Por isso, não perdôo Santos Dumont.
O presidente Lula, em solidariedade a mim, é também um portador do maior de todos os males: Ptesiofobia. Para sorte minha, levo algumas vantagens sobre o ilustre colega. Enquanto o avião para mim não passa de um pássaro metálico que sobrevoa à noite sobre o meu jardim, abrindo uma exceção ao brilho sagrado das estrelas, o presidente Lula precisa utilizar do terrível monstro para cumprir seu ofício. Um presidente não existe sem o avião. Antes da invenção do avião, quase não havia presidentes. Reis, imperadores e rainhas mandavam no mundo. Com a invenção do avião, Santos Dumont contribuiu sem saber para a invenção dos presidentes.
Andei lendo sobre o assunto e descobri que há algumas dicas para quem malditamente sofre de ptsiofobia. A primeira delas diz que se o sujeito se assusta com turbulências, deve ficar na frente do avião, onde elas são menos sentidas. Para mim, o problema seria ainda mais dantesco. Imagina, a comissária dando essa dica, para que os ptsiofóbicos ficassem na frente da aeronave. Em poucos minutos, o pássaro de metal estaria espatifado no chão, junto a colares, celulares, intestinos e jornais. Todos os passageiros, exceto os surdos, iriam para frente do avião, o que fisicamente falando provocaria um sobrepeso e levaria todos para o destino final da existência humana.
A segunda dica incita o passageiro assustado a se se distrair, conversando com o vizinho. Sugere ainda que leve algo para ler ou assistir ao filme oferecido pelo avião. Sugiro uma emenda a essa "lei". A conversa só pode ser sobre futebol, política ou religião. É recomendável aos passageiros, que usem de toda a sua opulência, se possível, gesticulando e ofendendo-se. É preciso desse sacrifício para que um ptesiofóbico esqueça por instantes o seu medo quando está a milhares de pés de onde deveriam estar os seus pés.
No manual de sobrevivência do ptesiofóbico, está incluída uma vista à cabine. Segundo os especialistas em ptesiofobia, isso aumenta a sensação de segurança. Só não entendo como um passageiro pode ficar tranqüilo ao se deparar com o piloto e o co-piloto falando piadas, e tendo à sua frente uma centena de botões. Será que o piloto sempre acertará o botão? Nunca se sabe.
Por fim, sugere o manual de vida pós-decolagem que o passageiro deve respirar profundamente antes do avião levantar vôo. A justificativa é que ajuda a relaxar. Na minha humilde interpretação, eu diria: respire profundamente. Pode ser a última vez.
Obs. Crônica escrita em junho de 2003, em uma época em que o presidente Lula ainda não havia sido curado da ptesiofobia.