O IRÃ E O BEIJO
Deu na revista que uma atriz iraniana foi condenada a 74 chibatadas. Quem supõe que ela explodiu um prédio ou incendiou algum índio errou. Sobretudo quem apostou na cremação indígena. No Irã não foram inventados os índios. A artista, imaginem, não fraudou a previdência nem sonegou o imposto de renda. Seu crime, inafiançável, foi ter beijado um homem. Em público.
As leis no Irã são severas. O Juiz ( se é que foi necessário um magistrado) nem perguntou à moça se amava o homem beijado. Se tivesse interrogatório ela não seria interpelada sobre os seus sentimentos e se o rapaz beijava bem. Não: o crime não tem nada a ver até se o beijo foi roubado. No Irã não se roubam beijos. No Irã o beijo é uma arte demoníaca. Cientificamente uma permutação bacteriológica e imunda.
Imagine essa lei em voga no Brasil. Quantas vagas novas de trabalho iriam surgir. Seria um tanto desumano para com a nossa libido, mas aplacaríamos a nossa fome social. Imagine quantos pais de família poderiam sair da insustentável miséria do ser.
João da Silva, acordaria com o toque do seu despertador. Vestiria sua roupa bem rápido. Estava atrasado de novo. Colocaria o café no fogo enquanto escovava os dentes. Olharia no espelho e se sentiria orgulhoso do seu ofício. Nome: João da Silva. Filiação: Maria das Dores e José Barroso. Esposa: Josefa. Filhos: Paulo Henrique e Maria Eduarda. Uns amores. Profissão: chibatador ou chibateador ( nunca soube ao certo). João já um tanto quanto atrasado, colocaria o chapéu na cabeça e pegaria sua ferramenta: o chicote dourado: último lançamento. Presente do patrão na sua mais recente viagem ao Irã. Antes, porém de ir ganhar o leite das crianças João cometeria um pequeno pecado: daria uma breve e rapsódia beijoca na mulher. Antes de sair, porém, pediria perdão a Deus e confeccionaria sua tradicional oração e iria mastigando seu pedaço de remorso e esperança até a fila do ônibus.
A família de João sentiria-se orgulhosa do ilustre patriarca. Conseguiria cumprir a heróica missa de colocar o pão na mesa sem ter que vender a própria mesa. João seria um trabalhador brasileiro. Um braçal. Assalariado. Ganho pouco, porém trabalho honesto. Ganho pouco, porém, com registro em carteira e benefícios no final do ano. Décimo terceiro e férias. Em dezembro, João tocado pelo espírito natalino, iria comprar uma grande árvore de natal e celebrar o nascimento do menino Jesus. João creria em Jesus e o adoraria com fervor. Iria à Igreja todos os domingos e depositaria na bandeja sua humilde, porém de coração, oferta.
João iria ganhar hora extra também. Seu trabalho é simples. Apenas exercer o ofício de levantar o braço e com o seu humilde chicote fazer o seu trabalho justiceiro. Uma mulher iria receber 114 chibatadas. Seu crime: beijou o rapaz do elevador. Ele iria mudar-se e ela não conseguiria mais esconder o seu amor. Ela iria estar com um leve sorriso no início, como quem diz: "tudo por amor". Mas, quando João desferisse a 15ª chibatada, ela iria ter o seu sorriso congelado e seu corpo suplicaria em silêncio que a alma fosse dar uma volta. João cumpriria apenas o seu papel. Às 11 horas em ponto, João pegaria a sua marmita e devoraria o seu merecido almoço. No fim do expediente, João agradeceria a Deus por mais um dia de trabalho.
Na empresa em que João trabalharia existem várias funções. Além dele que é um dos 14 chibatadores, há também as moças da limpeza, a recepcionista, o guarda, os brutamontes que amarram os réus. Há também o diretor de produção, o gerente, o chefe do departamento financeiro e cobrador. É um serviço decente, limpo e que não precisa fazer muitas horas extras ou trabalhar no final de semana e feriados. O ganho não é lá tanta coisa, mas se vai levando. Também os benefícios compensam.
No ordenado de João viria descontado o imposto sindical. João seria um trabalhador consciente e participaria das assembléias e de todas as reuniões do seu sindicato. Haveria 850 mil trabalhadores filiados em todo o País. Seria um classe unida e que lutaria por seus direitos. O presidente nacional do Sindicato conseguiria inclusive, uma audiência com o presidente da Câmara dos Deputados. Teriam deputados e vereadores. Quem não tivesse o registro da profissão poderia perder o emprego, se flagrado pela fiscalização.
Imaginem um inspetor que faria plantão em várias praças. Quando o primeiro casal de namorados chegasse ele se esconderia nos arbustos. Depois chegaria mais um casal. Como o inspetor seria experiente, sairia nessa hora e daria voz de prisão a todos. As duas mulheres seriam levadas, juntas, a um tribunal apenas para assinar um documento. Pura burocracia. Depois seriam encaminhadas ao local de execuções. A primeira receberia 87 chibatadas. A segunda, apenas 70. A segunda, segundo relato do inspetor estava mais comportada. A justiça seria feita e as duas mulheres nem levantariam a voz para protestar. Elas também acreditavam na justiça. Já os dois rapazes seriam advertidos para não se corromperem mais. Um deles receberia um tapa na orelha por ter respondido o inspetor.
Na notícia da revista, não constava o crime do homem. Por isso, ele não passou pela justiça da chibata.