Quando o desgosto mata
Contrarie-me quem quiser contrariar-me, é o direito de cada um e de todos, mas eu vou continuar achando que desgosto mata.
Meu irmão morreu de desgosto e todos que viveram com ele nos últimos anos de sua vida são unânimes em afirmar isso. E não estou me referindo a alguém que conscientemente tira a própria vida por não agüentá-la mais, mas sim a quem percebe que a única solução para seus problemas é a morte. Então vai se entregando a ela aos poucos e, quando a doença chega, o pega sem vontade nenhuma de reagir e viver. Ele se entrega e ela, a Dona Morte, o leva piedosamente em seus braços.
Temos exemplos dentro da própria família de pessoas que já poderiam ter partido, mas que resistiram e contrariando todas as expectativas continuam firmes batalhando pela Vida, porque a amam. Porque suas vidas têm sentido. Meu irmão não. Ele se entregou completamente. E agora vejo o mesmo acontecer com outra pessoa querida com o qual convivi tanto tempo que não me lembro de não me lembrar dele.
Morreu ontem à noite. Recebi a notícia por telefone. Fiquei chocada embora já fosse esperada. Hoje pela manhã fui ao velório levando flores de gratidão. Depois voltei para acompanhá-lo até sua última morada. Foi engavetado. As pessoas logo deram as costas e voltaram para suas casas. Mesmo os que o amaram. Ele ficou ali, sozinho. Não vai voltar para a minha Fábrica de Pães que ele amava mais do que a sua própria casa. Que na verdade era a sua casa. Era preciso mandá-lo embora, implorar: vá embora, por favor, vá descansar. Eu estou descansando aqui, bebendo a minha cervejinha, conversando com os amigos. Ir para casa para que? Você sabe o que vou encontrar lá? Não, ele não dizia isso, mas certamente pensava. E nós todos sabíamos o que ele ia encontrar lá. Viver para que?
Todos vão sentir sua falta. Era simples e era bom. Como uma criança, às vezes pedia um puxão de orelhas. Pedia e recebia. Mas não se importava. Como um menino levado fazia burro por pouco tempo, logo estava bom, de volta ao seu normal. Nem dá ainda para acreditar que não poderemos contar com ele. O sabor de nosso pão estará diferente daqui para frente, sem o seu toque.
Ainda hoje, quase dois anos depois da morte de meu irmão, quando subo a rua de nossa Fábrica de Pão, e avisto alguém de bermuda recostado na mureta do trailer de sanduíches, penso que é ele. Só por uma milionésima fração de segundo, mas essa milionésima fração de segundo me faz bem. E sei também, que o morto de ontem vai se juntar a outros fantasmas que vivem ali, cuidando para que nosso negócio siga em frente. Eu os sinto ali. E é por isso que sempre durmo tranqüila, longe de qualquer crise, livre de qualquer mal. Os nossos fantasmas nos protegem.
Lavras, 04 de fevereiro de 2010
Contrarie-me quem quiser contrariar-me, é o direito de cada um e de todos, mas eu vou continuar achando que desgosto mata.
Meu irmão morreu de desgosto e todos que viveram com ele nos últimos anos de sua vida são unânimes em afirmar isso. E não estou me referindo a alguém que conscientemente tira a própria vida por não agüentá-la mais, mas sim a quem percebe que a única solução para seus problemas é a morte. Então vai se entregando a ela aos poucos e, quando a doença chega, o pega sem vontade nenhuma de reagir e viver. Ele se entrega e ela, a Dona Morte, o leva piedosamente em seus braços.
Temos exemplos dentro da própria família de pessoas que já poderiam ter partido, mas que resistiram e contrariando todas as expectativas continuam firmes batalhando pela Vida, porque a amam. Porque suas vidas têm sentido. Meu irmão não. Ele se entregou completamente. E agora vejo o mesmo acontecer com outra pessoa querida com o qual convivi tanto tempo que não me lembro de não me lembrar dele.
Morreu ontem à noite. Recebi a notícia por telefone. Fiquei chocada embora já fosse esperada. Hoje pela manhã fui ao velório levando flores de gratidão. Depois voltei para acompanhá-lo até sua última morada. Foi engavetado. As pessoas logo deram as costas e voltaram para suas casas. Mesmo os que o amaram. Ele ficou ali, sozinho. Não vai voltar para a minha Fábrica de Pães que ele amava mais do que a sua própria casa. Que na verdade era a sua casa. Era preciso mandá-lo embora, implorar: vá embora, por favor, vá descansar. Eu estou descansando aqui, bebendo a minha cervejinha, conversando com os amigos. Ir para casa para que? Você sabe o que vou encontrar lá? Não, ele não dizia isso, mas certamente pensava. E nós todos sabíamos o que ele ia encontrar lá. Viver para que?
Todos vão sentir sua falta. Era simples e era bom. Como uma criança, às vezes pedia um puxão de orelhas. Pedia e recebia. Mas não se importava. Como um menino levado fazia burro por pouco tempo, logo estava bom, de volta ao seu normal. Nem dá ainda para acreditar que não poderemos contar com ele. O sabor de nosso pão estará diferente daqui para frente, sem o seu toque.
Ainda hoje, quase dois anos depois da morte de meu irmão, quando subo a rua de nossa Fábrica de Pão, e avisto alguém de bermuda recostado na mureta do trailer de sanduíches, penso que é ele. Só por uma milionésima fração de segundo, mas essa milionésima fração de segundo me faz bem. E sei também, que o morto de ontem vai se juntar a outros fantasmas que vivem ali, cuidando para que nosso negócio siga em frente. Eu os sinto ali. E é por isso que sempre durmo tranqüila, longe de qualquer crise, livre de qualquer mal. Os nossos fantasmas nos protegem.
Lavras, 04 de fevereiro de 2010