Manchas em meu passado



Minha memória consegue, por vezes, resgatar coisas de épocas em que eu era bem pequeno. Mas, bem pequeno, mesmo! Brotou-me, por exemplo, dias atrás, que meu berço e, depois, minha primeira cama, ficavam encostados junto a uma das paredes do quarto que, no passado, acomodava a meus irmãos e a mim. E bem ali, em frente ao ponto onde, ao deitar-me, os olhos miravam essa parede bem de perto, havia manchas.

As paredes de casa, naqueles meus tempos de infância, eram pintadas à base de tinturas formuladas a água, cal e corante. Isso, obviamente, não só barateava o custo de manutenção como, ainda, permitia que ao longo dos anos aquele cômodo, como os demais, tivesse recebido diversas colorações diferentes, numa variante decorativa das mais humildes, porém, até certo ponto suficientemente eficaz.

As tais manchas na parede, nada mais eram do que efeitos de duas circunstâncias distintas, apesar de correlatas. Com o tempo, era natural que aquele tipo de pintura fosse se desgastando e, ainda, havia pontos onde, a despeito de constantemente ser a parede repintada, acabava descascando e deixando ver várias camadas sobrepostas, gerando assim nódoas multicoloridas. Fosse qual fosse a natureza dessas manchas, elas quase sempre existiam, eram mutantes e viviam num constante processo evolutivo.

Na minha imaginação infantil, de início, assumi aqueles desenhos como seres animados e com vontade própria. Depois, um pouco mais crescido, simplesmente deixava minha imaginação divagar a respeito daqueles atípicos efeitos visuais, como se costuma fazer ao buscar formas com algum sentido na confusão das nuvens no céu.

Portanto, as manchas na parede, que aos demais passavam quase imperceptíveis, diluídas na costumeira paisagem doméstica, para mim tinham significado único, já que embalavam os momentos que antecediam meu adormecer, se transformando em pessoas, animais ou plantas; monstros ou heróis; anjos ou demônios; fontes de mal estar e pavor, ou conforto e alegria.

Todavia, um dia cresci, minhas camas passaram a ser abrigadas em outro cômodo e, com o tempo, mudaram-se também de casa. As “minhas manchas” ficaram para trás, recolhidas na inocência que se perdeu, mas com vivos contornos em minha mente, cuja memória não tem por hábito descolorir-se, apesar de descascar-se um pouquinho, aqui e ali.

Hoje, só sei que meu dormitório tem paredes brancas e já não encontro mais pontos tão específicos para focar minha atenção até que o sono venha. Ao contrário, há manchas, sim, mas são as cicatrizes da alma que, em si, mais servem para tirar o sono do que outra coisa e então, evito olhar para elas. Por fim, acho que minha imaginação é que desbotou-se um tanto e, agora, seria muito bom se eu pudesse repintá-la com novas cores e matizes. 

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