o menino e o sonho
Magricela de olhos lânguidos, pele escura e pés descalços, com sete anos de idade e aparentando sofrimento. Na padaria de cartazes coloridos e refrigerantes multinacionais com suas propagandas aliciadoras, pessoas desconfiadas e câmaras seguindo os passos do pequeno garoto. Após olhar insistentemente para o balcão e vazar o vidro espesso com a sede dos olhos famintos, dirige-se à atendente apressada:
- Moça, me dá um sonho?!
As palavras sutis e quase trêmulas se exalam naqueles ares de gente tão diversa, gravatas, linhos, sedas e perfumes de todas as marcas, e a placa dizendo: Sorria, você está sendo filmado!
O garoto, que não sabia ler as palavras, fazia sua leitura mais uma vez sobre aquele balcão de desejos e, numa nova tentativa, voltou à vendedora:
- Moça, me dá um sonho?!
Desta vez ela não desdenhou o pedido. Em tom de ironia e como se posasse para o aparelho que gravava todos os cantos daquele lugar, sabia ainda que na sala do chefe estariam todos a ver sua atitude de funcionária comprometida.
- O sonho é pra vender, você tem dinheiro?
Neste momento, o garoto que deixava sua vontade ir além de toda realidade, descobriu que não tinha e que sua vestimenta não possuía sequer o bolso para guardar as figurinhas de chicletes que trazia na mão suada.
A atendente ainda repetiu a pergunta, para depois dizer que o lugar não aceitava pedintes. Mas a resistência de quem deseja com avidez lhe fez contra-argumentar sob os julgamentos daquela platéia de olhares pejorativos e preconceituosos.
- Mas eu queria um sonho...
- Menino, se não tiver dinheiro, não tem sonho!.
Mais uma vez ele passou os olhos molhados pela extensão do balcão e salivou copiosamente, com passos lentos, na espera de uma mudança de opinião. Foi andando, andando e andando, até se dar conta de que já estava na porta de saída. Uma rara comoção tomou conta de alguém daquele meio que, saindo logo atrás, enfiou a mão na sacola e lhe ofereceu um pão. Convicto da sua vontade, o menino repetiu :
- Me dá um sonho?!
Sem tempo de ouvir, o pseudo-consternado seguiu seu caminho, sem mostrar ao menos o rosto ou responder alguma coisa. Pouco à frente, ainda com o cheiro do sonho no olfato e as palavras replicantes na consciência, ele atenta para um carro de som que vocifera seguidamente:
- Tenha bons sonhos,durma no colchão de espumas Vida Boa, você vai se deliciar!
Uma confusão das figuras de linguagem que desaguam na falta de entendimento daquele que nada tem, mas que sente a perda da tentativa, que gosto pode ter bons sonhos se ele dormia em papéis no chão, nas asperezas da vida ruim? Talvez não teria mais sonho para ele. De que adiantaria um pão que lhe matasse a fome se não tivesse o gosto do sonho? O sonho tem recheio que é doce e tem sabor que o pão não tem, o açúcar que cobre todo o exterior tem uma magia que é só dela. Mas, se para ter aquele sonho é preciso dormir no colchão de Vida Boa... ele chorou novamente, desta vez a soluçar, olhando para a padaria já distante. Mas continuou andando com seu sonho na cabeça. Cores, carros, motos e bicicletas, cães atravessando as avenidas e crianças grandes de barbas e roupas mutiladas também buscando seus sonhos.
De repente, papéis picados, mulheres de pouca roupa, cartazes e palhaços fazendo acrobacias em frente a uma grande loja de colchões que, por coincidência eram os mesmos do anúncio do carro de som. Com o pequeno coração em sobressaltos, o garoto adentrou a grande porta, muita gente atraída pelas promoções e vendedores sorridentes pela fartura.
- Moço, me dá um colchão?!
- Pra que você quer colchão, menino? Se não tem cama pra dormir...
- Mas é que eu queria um sonho! Me dá um colchão?!
- Mas é que eu queria um sonho! Me dá um colchão?!