Lembranças daquela noite...
    
     
Meu corpo se aquece debaixo das cobertas na casa de meus tios. Ao meu lado, na outra cama do quarto de hóspedes, dorme meu irmão, Ronaldo. Ressona, um ressonar que hoje não posso mais ouvir porque ele está morto. Mas não estava naquela noite, enquanto dormíamos na casa dos tios Alemão e Euza. E enquanto ele ressonava, cansado pela longa viagem de trem e pelas emoções do dia, meu corpo se aquecia debaixo das cobertas e eu pensava nele. No corpo que provavelmente estava frio como a noite mais fria de Arantina. O corpo de Terezinha, a moça que desaparecera na véspera e da qual ninguém sabia o paradeiro.
 
   Procurando pelas lembranças, não me lembro a que hora chegamos. Lembro, porém que as pessoas que me avistaram pela janela do trem correram para a estação; pensaram que eu fosse ela, voltando de uma curta viagem de fugitiva e não da morte, como todos já esperavam. Correram para avisar aos outros, mas eu não era ela e eu que imaginava ser bem vinda, retornando a terra natal, vi a decepção nos olhos de todos. Até eu fiquei decepcionada quando vim saber do ocorrido. Queria ter sido ela e acabado com aquela agonia.
 
Naquela noite eu fui ficando cansada de pensar. Lia tantos romances policiais que acreditava ser uma detetive em potencial. Mas por mais que pensasse não conseguia atinar com as razões de tal desaparecimento. Nem com seu destino. O que era sabido me foi contado em várias versões. Vivia na casa em que eu vivi um dia, na casa que ainda era de minha família e onde outro tio hoje morava com a sua família. Dormia em um pequeno quarto ao lado da cozinha, quarto que um dia fora nosso banheiro e onde escondida eu li meus primeiros livros proibidos.  Além da porta, o tal quartinho tinha uma pequena janela e foi por essa janela que ela passou. Não sei como conseguiu. Só sei que dali ela atingiu silenciosamente o portão que dava para a rua e sumiu. Histórias passaram a ser contadas de gente que ouviu seus passos na noite escura e os cães ladrando. Mas ninguém podia adivinhar.
 
Naquela noite eu bem me lembro, estava com frio, estava com sono, mas não conseguia dormir. Quando pensava que isso ia acontecer, um sobressalto. Cães latindo, passos ecoando na noite. Que só eu ouvia. Lá fora o silêncio da noite perdida. Dentro de mim os barulhos da noite indormida. Fantasmas que se formavam para atormentar-me e inspirar-me por noites sem fim. Muitas vezes ainda acordo em outros lugares pensando naquele e na noite distante da solidão sem fim. Mas já não penso mais como as crenças danosas me incutiram: ela nunca iria para o céu porque não respeitara a própria vida. Hoje penso que ela é um anjo ou uma estrela ou qualquer coisa em que a gente se transforme depois da morte apesar das culpas e dos erros.
 
Ela foi encontrada na manhã seguinte quando a lagoa a fez submergir. E eu fui ver e o que vi foi apenas o leque de cabelos negros espalhados na água barrenta da lagoa e nem quis mais ver. Desisti bem ali de querer saber qualquer coisa, de ser como os detetives das histórias de Agatha Christie que eu tanto admirava. Ser detetive? Isso é para literatura ou para o Enéas, o primo de minha mãe que fez um curso por correspondência e quase foi preso em Lavras, alguns anos depois quando cismou de investigar incêndios que estavam acontecendo em série por aqui. Mas isso é lembrança para outro capítulo.
 
 
 A moça Tereza

A moça Tereza tentou a travessia
na noite chuvosa de ventos tristonhos.
Os cães avisaram, mas os sonhos da noite não se importaram.
A Lagoa chupou toda a água dos olhos da moça Tereza,
e a moça bebeu as águas torturadas na noite escura.
Nenhuma árvore balançou suas folhas na hora do adeus.
Os pés da moça Tereza buscaram o chão firme
e os cabelos se espalharam como um leque negro na superfície.
O que é aquilo, perguntei, quando vi.
Matéria prima para a angústia de seus dias,
foi a resposta que ouvi do coração.


Do livro em construção - Uma casa na frente do rio...Um riono fundo da casa.