CRÔNICA DA VÉSPERA

Às vezes não somos belos o suficiente para suportar o espetáculo da vida quando depositado – fraterna herança – sobre nosso colo. Temos o dom de assustarmos. Uma vez feito isso, nos acalmamos e, como pássaros vadios, seguimos em silêncio o nosso voo. Um silêncio de alma, mas que torna nossos corpos vigilantes fiéis desse segredo.

Esta crônica não terá o mesmo efeito daqui a quatro meses. Dentro desse período este nobre servo da existência atravessará o poético e assustador caminho do altar. Do meu lado não terei apenas a companhia de minha doce amada. Enxergarei também as penas caídas sobre o chão, como se de uma guerra de pássaros, sobrasse essa prova de que a vida continua. E recomeça em outro plano. E seguirá reta e imponente, levada por uma mão, que desaprenderá o tato e aprenderá passo a passo a arte de tatear.

Em quatro meses serei um homem casado. Talvez estarei mais velho e serei mais respeitado. Serei cumprimentado de uma maneira diferente, como se cumprimentam pessoas sérias e casadas. Com uma saudação triste e curta. Mas procurarei retribuir como um plácido guerreiro, que de posse de sua certeza, não hesita em celebrar sua vitória, mesmo quando as trincheiras ainda não estão terminadas.

Não quero, como tanta gente, descobrir o lado amargo de carregar o singelo fardo do matrimônio. Sei que a vida reservará numa tarde ensolarada de domingo, talvez, uma discussão indócil, uma raiva repentina e palavras que não dormirão. Sei que em dado momento nos perguntaremos se estamos depositando nossa cota de felicidade no baú de esperança do outro. Sei, e ainda não sei completamente, que nos descobriremos pelo menos por um instante dois terríveis estranhos. E talvez lágrimas não recearão em ficarem guardadas, como presente de casamento.

Isso tudo poderia tornar-me um reflexivo cidadão, prestes a tomar a decisão de trocar sua vida e se preparar para uma existência desconhecida, tornar-se um animal domesticado. Mas antes, depois e entre tudo isso há o amor, como diria meu mestre Rubem Braga. O amor, esse estranho recheio, esse monstro de asas alegres, esse germe que brota no monturo da acidez, esse cidadão que mesmo com os olhos molhados em lágrimas, insiste em erguer alto a sua bandeira e, mesmo sem ventos favoráveis, fazê-la tremular e ser apreciada como o mais belo monumento. Um monumento que se embriagou no vício de querer ser para sempre.

Obs. Crônica escrita antes do casamento e publicada depois da separação.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 18/01/2010
Código do texto: T2037124