O OLHAR DO CÃO

No meu humilde feixe de ideias eu já concebia o fato de que o cão se comunica através dos olhos. Agora, posso morrer tranquilo: a ciência está comigo. Pesquisadores da Hungria concluíram um estudo que revela que os cachorros possuem a faculdade de se comunicar utilizando-se das pupilas. Pupila de cão é algo muito sério. Nela está certamente uma das sete chaves que abrem todos os mistérios do mundo.

Considero-me meio irmão de todo cão. Sobretudo os vira-latas. Em um paralelo com os seres humanos, os vira-latas seriam os poetas do mundo canino. Ou loucos, os incompreendidos. Louvo-lhes a coragem de devorar até o último cálcio o osso da renúncia do glamour. Os olhos do vira-lata são a estreita janela por onde escapam o belo da tentativa, o incerto da aventura, o crepúsculo do medo. Os olhos do cão vira-lata são portadores da luz que apenas os mendigos humanos conseguem se alimentar. A luz que ilumina a poesia eterna da simplicidade de ir vivendo.

Fico grato pelos séculos dos séculos amém aos cientistas húngaros. A Hungria de hoje em diante será para mim uma espécie de Pasárgada irrealizável. Amo devotamente a Hungria e seus cientistas. E acima deles, a figura poética dos cães húngaros. Em casa de acontecer algum dia o Congresso Internacional dos Cães, exijo que seja na Hungria. Será o 1º Congresso Internacional sem a necessidade de intérpretes. A linguagem fluirá natural como o amor no coração dos apaixonados.

Ainda não estamos tão evoluídos como os cães. Enquanto nos insultamos em mandarim, alemão e inglês, os cães se espiam, sabendo-se seres superiores. Passam através do brilho dos olhos uma palavra de amor ou de súplica. Com uma fria telepatia, os cães conseguem entender que ainda não foi inventado nada que substitua a beleza da comunicação ocular. Para os cães não há a necessidade de idiomas. Seu idioma está na sua forma de inventar o mundo. Conseguem se comunicar pela mesma janela pela qual recebe a maior das comunicações: olhar a vida e saber-se forte por isso.

Confesso com humilde vergonha: não tenho cachorro. Uma das maiores solidões é a de não ter um cachorro. Mas, se de repente, ao andar pela rua sozinho, sonhando com outra humanidade, eu me deparar com um cão, o mais vira-lata dos cães, saberei dizer, olhando nos seus olhos, como somos parecidos. Como estamos sozinhos no caos universal. De repente, poderei lhe recitar alguns de meus poemas, sem ter a gélida necessidade de furar o tédio do silêncio verbal. Usando simplesmente o brilho dos olhos lhe direi coisas absurdas que penso do amor, da vida e do coração das pessoas e dos bichos. Ele, eu sei, me compreenderá e me convidará a comer do seu osso, beber da sua água e viver no seu mundo. Sairemos nós dois a passear pelos pântanos da noite, cruzando com industriais, soldados e gerentes. Todos demasiadamente ocupados com suas funções.

Sem ser notados, seguiremos em nosso sarau. Talvez alguma menina boba de oito anos, ache bonito ver um homem passeando com o seu cão. Para ela, nós seremos como um possuidor e possuído. Deixaremos que ela acredite até a eternidade de sua infância que somos um dono com o seu cão a passear. Esconderemos do silêncio dos homens o nosso metafísico e interespecial segredo. Que somos apenas dois vira-latas, dois poetas, que de si não possuem nada, exceto o fato de ter um dia, na mais estranha descoberta, encontrado o sentido da vida.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 16/01/2010
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