O Vôo da Serpente

Ela quis ser o superman. Queria voar e saltou do prédio mais alto que encontrou. Pensou consigo que as pessoas lá embaixo se perguntariam o que seria aquele objeto cruzando o espaço acima de suas cabeças. Um pássaro? Não, um avião? Seria ela. Sabrina voando.

Então tratou logo de entrar no elevador antes que a coragem tratasse de ir emboora. Esses arroubos de iniciativa são voláteis, ela sabe disso. Daniel não quer mais nada com ela. E porque iria querer, se a outra é bem melhor, mais gostosa, mais bonita, mais sociável, veste-se melhor e não costuma assistir o canal de vendas de madrugada, fantasiando comprar tudo o que não precisa, para sentir-se quem sabe mais fútil e um cadinho só mais feliz?

No elevador não havia ninguém, só a ascensorista. Ascensorista não é gente, é um robô que aperta botões e lê revistas de fofoca. Algo sobre a Juliana Paes, um novo batom vermelho puta, um creme para a pele que retira magicamente as rugas e uma dieta para perder 20 quilos. Talvez se perdesse vinte quilos Sabrina voaria com mais facilidade. Mas um boeing 747 possui 38 toneladas vazio e mesmo assim voa. O segredo está na aerodinâmica, propulsão e algo sobre adestrar o vento. Isso não importa agora. Se preparou para este evento como quem se prepara para algo muito importante, vestiu seu melhor vestido de festa que nunca usou e esperou que a coragem viesse lhe dar o sinal verde. Qual foi a grande surpresa hoje de manhã? "Vai, Sabrina, hoje é seu dia. Voe!"

Ela não sabe o que mais está escrito naquela revista, mas provavelmente o que ela sabe não está escrito lá. Por exemplo, que o diâmetro da Terra é de 39.830 quilômetros e que esse cálculo foi possível graças às primeiras observações de Eratóstenes, entre 276 e 196 a.C.

A ascensorista estoura uma bola de chiclete esbranquiçada, dessas que se masca demais e perde a elasticidade, vira uma borracha gosmenta na boca. A porta se abre. Último andar. Sorri e diz obrigado. A ascensorista apenas fecha a porta, como se devolver o sorriso fosse como pagar o aluguel de uma amizade.

O piso estava vazio, só uma faxineira que também não era gente, era faxineira. Pelo menos é o que diz no crachá dela: "LIMPEZA". Ainda em 1966, Joseph Weizenbaum criou um software que simulava uma psicóloga e essa "analista virtual" foi amplamente utilizada no que hoje chamamos de Teste de Turing. O nome da "psicóloga" era ELIZA. Um dos robôs que esploram Marte chama-se SPIRIT.

A moça que esfrega o chão amargando o ângulo da coluna não é gente, é faxineira.

Sabrina sobe ó último lance de escadas até o térreo do prédio. Vento, muito vento. Um helicóptero se faz ouvir nas nuvens em algum lugar, mas não conseguiu encontrá-lo com o caçar dos olhos. Também não importa. O nome dela é Sabrina e Sabrina sabe voar. Só isso que importa.

Chegou na beirada. Um parapeito de 50 centímetros, o suficiente para impedir que uma criança levada caia lá embaixo, atrapalhando o comércio local ou o trânsito que não pode parar por nada neste mundo. Buzinas, carros às torrentes e gente formigando por todos os lados, entrando e saindo de lugares, conversando ou caladas, mas sempre andando, como abelhas operárias, mas sem nenhum néctar para carregar.

Havia duas árvores ladeando a porta de um boteco. Velhas, tortas e cinzas. É como o pulmão de um fumante, ela pensa.

O que aquelas pessoas lá embaixo iriam pensar? - recobra a questão. Que algo seria aquele cruzando o céu sem fazer o barulho de um motor? _Uma moça, vinte e poucos anos - diria alguém que pudesse enxergar. Os mais velhos ajeitariam os óculos no nariz. Pessoas tapariam a testa para tentar evitar o sol. Todas as cabeças se voltariam para cima. E lá encima estaria ela, voando. Sairia nos jornais da manhã seguinte ou no noticiário dessa noite? Allguém conseguiria filmar com a câmmera de um celular, iria parar na internet, acessos do mundo todo. Todos veriam o fenômeno que era uma garota de vinte e poucos anos que sabia voar feito um colibri.

Equilibrou-se no parapeito e abraçou o vento. É preciso uma comunhão, ela sabe. Uma entrega total. É apenas ela e o vento agora, entre os cabelos, as pernas e os braços. Uma comunhão. Um vôo rasante sem o ronco de um motor, sem Co².

Talvez, vendo ela voar sem asas, as pessoas lá embaixo vão se lembrar de coisas fantásticas que já quiseram fazer e não fizeram só porque um dia olharam no espelho e perceberam que não tinham asas pra voar.

Pensando nisso, beijou o vento e abriu um largo sorriso. Estendeu os braços e decolou.

Sabrina despenca como um tijolo. Ninguém viu. Um office-boy que passava ouviu um som abafado numa contrução abandonada. retira o fone do ouvido e olha desconfiado para a velha obra escurecida. Nenhum movimento. Nenhum som a não ser as buzinas.

Recolocou o fone no ouvido, deixando uma banda pop voltar a preenchê-lo em áudio stereo. Precisa ir ao banco. O banco fecha às quatro. E ele é só um office-boy. Não pode se atrasar.

Felipe Lacerda
Enviado por Felipe Lacerda em 16/12/2009
Código do texto: T1980877
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