A Última Vez
Olhou-se longamente ao espelho. Esboçava um sorriso ligeiramente enigmático esmiuçando rugas nos cantos dos olhos, dissecando imperfeições nas maçãs do rosto, catando um ou outro ponto negro nas esquinas do nariz. Examinava o tom pálido e deslavado da tez. Ponderava sobre a falta crónica de hidratação.
Soltou o cabelo delicadamente colhendo os diversos ganchos que há muito lhe mantinham o penteado singelo. Ele roncava mansamente no sofá, em frente a um filme de acção de humor dúbio.
Retirou a embalagem da caixa e foi espalhando a base no rosto com movimentos suaves. Sem pressas. Sem vislumbre de censura. Driblando com minúcia as marcas implacáveis do tempo. Vestiu um saia-casaco escuro por cima da blusa discreta e calçou os únicos sapatos apresentáveis que tinha. Seria apenas uma vez sem exemplo. Uma oportunidade de voltar a sentir-se mulher antes de se tornar numa respeitosa velha. Fechou a porta sem fazer barulho enquanto ele ressonava, agora já mais ruidosamente.
Voltou de manhã e ele permanecia escarrapachado no velho sofá de sempre. Cheirava a cerveja com whisky, como habitualmente. Não o quis acordar. Sabia que o trabalho no cais escasseava. A antiguidade era um posto e ele era apenas um quarentão barrigudo. Talvez daqui a uns dias atracassem mais barcos e a força de outros braços voltasse a ser necessária.
“O que é o almoço, Lurdes?”
“ Atum Surpresa.”
“ A surpresa era um dia encontrar atum no meio dessa mixórdia toda que lá botas...”

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 15/12/2009
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