Crônica da boa vontade
Às vezes mesmo as cousas que gostamos de fazer podem se tornar bastante cansativas e tumultuadas, ao bel-prazer do fado tirano. Num dia em que o Kumon havia atingido o apogeu do tumulto, eu estava no metrô voltando para casa, sentindo um misto de cansaço e angústia, e uma senhora muito bem vestida de cabelos vermelhos, maquiagem forte e imponência ao andar se aproximou de mim. Sua voz, mesmo suave, era firme, e foi com sotaque espanhol que me perguntou como fazia para chegar à Sé, com a maior educação e um sorriso nos lábios rubros. Dei-lhe prontamente a informação, afinal, ela nada tinha a ver com meus problemas, e lhe perguntei em seguida se ela desejava mais alguma coisa. Respondeu-me que ia ao Guarujá, e precisava desembarcar no Jabaquara. Disse a ela que esperasse para que quando chegássemos à Sé eu lhe explicasse tudo. Ela foi muito bondosa em confiar a mim seu destino, sem nem me conhecer. Daí esperamos.
Quando o trem parou na Sé, avisei-a e ambos descemos na plataforma. Enquanto a conduzia à escada rolante que dava acesso aos trens que seguiam para o Jabaquara, ela me disse que eu era um bom rapaz por tê-la ajudado tão servilmente, principalmente por ter-lhe indicado a direção certa, visto que nesse mundo quase não mais havia pessoas boas. Fiquei impressionado, e muito agradecido, para não dizer envergonhado. Eu não podia esperar mais nada depois disso, fiquei feliz ao ouvir o que ela disse, admito. Depois de perguntar umas três vezes se ela tinha quem a esperasse no Jabaquara e ouvir a mesma resposta positiva e gentil, despedimo-nos. Deu-me um beijo agradecendo-me mais uma vez, abriu a bolsa e tirou um pacotinho dourado, estendendo-mo com um sorriso. Ela desceu e foi para sua vida.
Aquilo com certeza me fez enxergar o dia, mesmo que no seu fim, de uma maneira melhor. Havia ajudado alguém, quando na verdade julgava eu mesmo estar precisando de ajuda. Na verdade, acho que a ajuda de que precisava me veio na forma de ajudar a senhora espanhola, mesmo que fosse naquela cousa pequenina. O cansaço e a angústia abandonaram-me totalmente quando abri o pacotinho dourado e senti o cheiro de chocolate: meio amargo, meu preferido. Sorri. Mal me importei quando o trem seguinte chegou e as pessoas me esbarravam num ombro ou noutro.