TANATHUS ( CAP 1 A 4 )

TÂNATHOS

Entre o céu e a terra

DAIANA BARBOZA RIBEIRO

“EM TODO TEMPO SE AMA O AMIGO, E NA ANGUSTIA SE FAZ UM IRMÃO.” PV 17:17

EPÍLOGO

Amigos são pessoas realmente raras em nossas vidas, amigos que possamos contar daqueles que podemos falar boas verdades e mesmo assim eles permanecem nossos amigos, não amigos ocasionais, daqueles forjados pela necessidade como os que fazemos na escola, na igreja, enfim nos grupos sociais, amigos que simplesmente surgem na sua vida, arrebatam-te dela e de repente você não consegue imaginar como é que viveu tão tempo sem ela. E foi assim que conheci o meu melhor amigo...

1.PRIMEIRO ENCONTRO

Era meu aniversário de 13 anos, taí uma data verdadeiramente sem graça, não via tanto motivo para comemorar. Eu morava num apartamento pequeno com meus pais e meu irmão caçula, Victor, a propósito eu esqueci de me apresentar, meu nome é Alice. Nunca fomos ricos, mais minha família vivia bem, então mamãe fazia questão de comemorar o aniversário de cada filho de alguma forma. A grande idéia da comemoração deste ano veio da minha tia Verônica, que não perderia a oportunidade de conhecer um lugar novo, sem gastar muito, já que papai fazia o tipo “eu pago”. E por mais que eu dissesse umas duas mil vezes que preferia comer pizza em casa a sair com aquele vestido, fui voto vencido, afinal só era meu aniversário.

Então fomos a um restaurante do centro, não muito longe de casa, talvez só uns dez minutos de carro se todos os semáforos estivessem abertos, não foi difícil encontrar uma vaga para estacionar já que era meio de semana, terça-feira, para ser mais especifica, sentamos em uma mesa central e o garçom entregou um cardápio para meus pais, minha tia estava atrasada, como de costume, papai preferiu fazer o pedido depois que minha tia chegasse e ficamos ali, sentados, os quatro, com cara de paisagem, meu irmão brincando com os paezinhos que eles colocam na mesa e minha mãe comentando com papai sobre a cor das cortinhas que não combinavam com a toalha de mesa.

Só mais duas mesas estavam ocupadas, uma mais no canto, que ficava em diagonal com a nossa e com uma das laterais na parede, era ocupada por um casal de meia idade, sorridente, ele era branco e suas gargalhadas ruidosas enchiam o local, a mulher meio loira era bem magra, ao lado dela estava sentado um garoto que parecia não compartilhar da felicidade deles, estava serio, às vezes encarava o homem, às vezes parecia só olhar o vazio, estava vestido de preto, com uma camisa de botões e uma calça de corte de alfaiataria, a pele era branca, constranstando com os cabelos negros, lisos e meio caídos pela testa, não aparentava ter mais de dessesseis anos, era magro e esguio como o casal, sua fisionomia era perturbadora, como se não fizesse parte daquele quadro. Mamãe notou meu interesse, me deu um cutucão e comentou.

____Olha que casal mais empolgado, devem estar comemorando o aniversário de casamento___ e depois olhando para papai___Bem que a gente podia comemorar o nosso aqui também

Papai só assentiu com a cabeça, a essa altura ele já queria estar em casa de volta para ver o jornal e nada da tia Vê chegar.

Na mesa do casal alegre o garçom serviu uma travessa de camarões belamente organizados, imaginei que aquele fosse o prato chamado cascata de camarões, o rosado dos camarões combinava com o vestido da mulher que os olhava com gula, mais o primeiro a tocar a travessa foi o garoto de preto, não foi como se ele quisesse pegar um camarão mais como se colocasse algo dentro, os dedos da mão balançando rápido porem suavemente como quem acrescenta sal a comida, depois cruzou os braços sobre a mesa, e fitou o homem gordinho e risonho que pegou um camarão dos grandes e saboreou com prazer.

Finalmente minha tia Vê chegou me distraindo um pouco dos acontecimentos da mesa vizinha. Ignorando o mau humor característicos de meu pai quando está com fome, minha tia veio por trás de minha cadeira e me abraçou.

___Me desculpe pelo atraso meu bem, você sabe como é difícil pegar um táxi nesse lugar?!e então pediram o que?

___Nada, __resmungou meu pai __Tínhamos que esperar você não era...

Minha tia não respondeu, sentou-se ao meu lado e pegou o cardápio sem pressa nenhuma.

De repente um grunhido alto veio da mesa ao lado, o gordinho estava de pé com as duas mãos no pescoço, mais vermelho que as toalhas na mesa, sua mulher gritava desesperada.

___Acudam, acudam,!! Ele está engasgado!!!

O desespero encheu o restaurante vazio!

Minha família ficou imóvel, a família da outra mesa ficou de pé para observar melhor, o garçom e o maitre correram para socorrê-lo, um garçom alto, abraçava o pobre do homem por trás fazendo pressão contra seu diafragma afim de que o ar dos pulmões o desengasgasse, a mulher já estava banhada em lagrimas de desespero, papai ligou para os bombeiros, mamãe começou a sibiliar uma oração, e eu pasma com a cena senti uma raiva mortal do rapaz de preto que permanecia sentado, inerte, como se nem conhecesse aquele homem agonizante, seu olhar era frio, gélido talvez, os braços cruzados sobre a mesa como se assiste a um espetáculo intediante.Depois de muitos minutos de luta, o garçom já banhado de suor e desespero, o homem ficou imóvel, flácido, e de olhos fechados, não respondia, logo a vermelhidão do rosto sumiu, e o garçom parecia balançar um enorme boneco de pano, a mulher gritou.

___Ele morreu!!!

O garçom o colocou no chão deitado, fazendo massagem eu seu peito, os bombeiros finalmente chegaram e assumiram seu lugar,fizeram diversas manobras mais nada do homem voltar a respirar, a essa altura o restaurante estava lotado de curiosos, minha tia chorava, e minha mãe já havia feito tudo que podia, rezar o maximo, minha raiva estava cada vez maior, porque o garoto continuava ali, imóvel!!

Os bombeiros colocaram o homem na maca, e o cobriram com um pano branco, não precisei que ninguém me dissesse o que aquilo significava, eu sabia, o gordinho feliz tinha morrido, o garoto estranho levantou-se, deu a volta pela maca, abaixou-se e tocou na testa do homem com o indicador da mão direita, como quem confere a cobertura de um bolo, pareceu espirar fundo, olhou um pequeno papel que estava no bolso da calça e depois o guardou. Pareceu que ia se retirar do restaurante quando, ao elevar a cabeça se deparou com meus olhos que o fuzilavam, encharcados de raiva e tristeza, ele pareceu se assustar com isso, e não se moveu, papai já cansado daquilo tudo , puxou minha mãe e meu irmão pelo braço para fora do restaurante e eu os segui, em fila, quando passei pelo garoto de rosto petrificado, imaginei que a culpa só podia ter sido dele, seja lá o que colocou na comida do homem, isso o matou, não me contive a passar em sua frente e falei:

___Porque você o deixou morrer? __ele pareceu mais pasmo ainda do que antes.

Minha tia achou que eu falava com o bombeiro atrás do corpo, puxou meu braço e falou.

___Eles fizeram tudo podiam Alice.

No carro, ninguém queria comentar a cena do restaurante, como meu aniversário de 13 anos tinha atraído um azar danado? Apesar da minha pouca fé nisso. Nunca tinha visto ninguém morrer e agora teria de conviver o resto da minha vida com aquela lembrança tenebrosa, pobre gordinho risonho, e maldito garoto covarde, certo que eu não fiz nada também além de chorar, mais ele nem isso foi capaz de fazer, como podia conviver com sua própria consciência, como podia existir sem se odiar?

Naquela noite minha mãe fez questão de ver como eu estava antes de ir dormir, comentei a atitude do garoto de preto, ela ficou assustada de repente.

___Só estava o casal na mesa querida. Nossa você deve realmente ter ficado muito apavorada.

Depois ela me mandou orar antes de dormir, pra não sonhar com aquilo tudo, fiquei completamente confusa, não pode ser um delírio pós-traumatico, porque afinal, eu já o tinha percebido antes do homem se engasgar, e como pode minha mãe não ter visto uma pessoa que era tão contrastante com a alegria daquele casal, que loucura era essa, eu estava vendo coisas agora?!!

2.BIBLIOTECA

Procurei parar de pensar nisso, senão eu realmente iria me convencer de que estava ficando completamente louca. Depois daquele dia, minha mãe passou a ter uma certa preocupação especial comigo, afinal a experiência de presencia a morte, mesmo de um estranho poderia mudar a perspectiva de um adolescente.

A imagem daquele garoto, porém, era mais perturbadora do que a lembrança do gordinho agonizante. Os dias foram se passando, e cheguei à conclusão que não voltaria a vê-lo.

A minha vida, no entanto, tinha a obrigação de continuar, inclusive a vida acadêmica, e foi assim que eu, naquela manhã, fui à biblioteca municipal para uma pesquisa escolar, a biblioteca da escola era muito limitada e eu tinha que escrever pelo menos três páginas sobre um pequeno país da Ásia que o nome eu já nem me lembro por que se perdeu diante dos acontecimentos na biblioteca.

Fazia sol, fui com minhas colegas Jô e Melissa, o pai de Mel nos levou de carro o que nos poupou muito tempo. A biblioteca municipal era grande, com um pavimento térreo onde ficava o espaço dos livros mais procurados, e um pavimento superior onde ficavam livros mais raros e menos procurados.

____Detesto fazer trabalho em biblioteca __ declarou Mel com um beicinho, perdida em uma pilha de livros.

____Isso ta me dando tanto sono__ falou Jô, em meio a um bocejo.

____Vou tomar um copo de água antes que eu desmaie em cima desse livro.

Levantei e fui à direção ao bebedouro que ficava ao lado da escada, a escada era elegante, pareciam aquelas de filme antigo, era larga e dava uma pequena e suave volta antes de chegar ao pavimento superior, peguei um copo de água e vi que minhas colegas continuavam distraídas, senti um desejo de subir, de conhecer o outro pavimento, já havia feito outros trabalhos naquela biblioteca mais nunca tinha tido curiosidade de conhecer a parte dos livros literários, subi a escada devagar, observando minhas amigas sumirem do campo de visão. A escada desembocava bem no meio de uma sala enorme, rodeada de estantes com prateleiras pretas, tinha quatro janelas que estavam fechadas, e em uma das laterais mesinhas individuais que tinha apenas duas pessoas sentadas, ali realmente tinha cara de biblioteca, porque o silencio era cortante, fiquei tentando lembrar das aulas de português, caçando na memória um adjetivo para aquela sala e para a súbita emoção que eu estava sentindo, como se estivesse entrado em um santuário proibido, mais não encontrei, e por isso senti raiva, raiva por ter um vocabulário tão pobre a ponto de não consegui descrever aquela sensação de desafio e prazer.

Comecei a andar entre as prateleiras, lendo seus subtítulos, suspense ao lado de ficção científica, romance, depois mitologia grega, romana, e se seguiam uma fila de prateleiras, estava maravilhada com a quantidade de livros meticulosamente organizados ali.

Ao passar mais duas estantes comecei a sentir um perfume que destoava daquele ambiente, era forte e doce, mais não enjoativo, era como um campo de flores, era agradável de mais para ser qualquer produto de limpeza, alias era agradável de mais para ser alguma coisa daquele planeta. Agora eu continuava seguindo, não mais preocupada com os livros, mais seguindo aquele aroma que era penetrante e de repente não me parecia estranho, parecia familiar, mais era difícil de dizer.

Só faltava averiguar as estantes do fundo, entrei no corredor intitulado, religiosos, não que eu fosse muito religiosa mais eu achava lindo as figuras celestes daqueles livros, a maioria ilustrado, puxei da prateleira um grande que estava escrito na lateral “Angiologia” , o livro era pesado, deixou uma lacuna na estante que me permitiu ver a pessoa que estava do outro lado, estava de costas, com um livro na mão, era alto, magro, com uma camisa bege, alias, mais pra champanhe, comecei a tremer como se eu tivesse levado um choque de 220 voltes, era ele, era ele, o cara do restaurante, o garoto que deixou o cara morrer, meu primeiro impulso foi de sair correndo dali, eu não queria que ele me visse, minhas mão suavam frio, tive medo, mais rapidamente o medo foi dando lugar a ira outra vez, e o livro de anjos pesado caiu da minha mão com um estrondo no chão, ele se virou para mim e me encarou de olhos arregalados e disse assustado.

____Você de novo!!!

Não pensei muito na resposta, aquilo pareceu mais uma afronta.

____Algum problema?

Ele pareceu ainda mais assustado, eu e que deveria estar assustada afinal ele que era o vilão da historia, pelo menos para mim.

____ Não exatamente, só sei que você não deveria me ver.

____ Por quê? __ falei sem pensar.___ Por que sou a única testemunha do seu crime?

____ Crime? Que crime? Do que está falando?

____ Aha, só pode ter sido você o causador da morte daquele pobre homem risonho. Colocou alguma coisa na comida dele ou o que.

____ Você não faz idéia do que eu sou.

Fique assustada, será que eu estava discutindo com um serial killer, será que eu era a única testemunha de um crime?

____ Sei que o cara no restaurante estava bem e feliz, o jantar foi servido e você mexeu nos camarões dele e ele morreu.

____ Edema de glote.

____ Que?

____ Ele morreu de edema de glote, é uma obstrução da garganta que acontece quando a pessoa tem alergia a certos alimentos, e no caso dele era camarão.

Fiquei muda, então o cara era alérgico a camarão, aquilo passou de homicídio para suicídio acidental por causa de duas palavras que até então não faziam parte do meu limitado vocabulário. Pensei um pouco, mais isso não explicava porque eu o vi e minha mãe e minha tia não.

___ Tudo bem isso explica a causa da morte mais...

___ Mais o que?

Eu não sabia exatamente o que perguntar, qualquer coisa que eu perguntasse ia parecer ridículo mesmo. Ele deu a volta na estante e se colocou diante de mim, suas feições agora eram claras e leves, segurava um livro que eu não consegui ler o titulo, ele não era estupidamente bonito, mais era uma criatura que chamava a atenção, seja por seus traços finos diferentes dos garotos da mesma idade, seja por causa de sua expressão. Ele se abaixou para pegar o livro que eu havia derrubado daí percebi que o perfume vinha dele.

¬___ Você gosta de anjos?

¬¬¬¬¬___ Gosto dos desenhos que fazem deles.

___ E se eu disser que eles não são muito parecidos com esses desenhos?

___ Você por acaso já viu algum?

Pela primeira vez o vi sorrindo, um sorriso meio torto com um ar de ironia, mais sorrindo.

___ Às vezes..

___ Hã, até parece, vai dizer agora que também já viu demônios e a dona morte __ eu estava completamente cética.

___ Bem demônios algumas vezes mais prefiro não vê-los, eles são perturbadores da minha paz já a dona morte...

Ele interrompeu a fala como quem ia falar de mais.

___ Me desculpe mais eu não consigo acreditar.

___ Acho que você precisa ter mais fé.

___ Eu acredito na existência deles eu não acredito é em você.

___ Então acho que encerramos nossa conversa por aqui, talvez seja melhor assim, talvez você nunca mais veja e esqueça por completo a historia do restaurante.

Eu detestava enigmas, era horrível em descobrir coisas, não queria ser forçada a ficar incucada com aquilo e pesquisando, eu queria que ele fosse claro, aberto como um livro, e me dissesse afinal de contas quem ele era.

___ Não vai agora!

Seu olhar se perdeu no espaço de repente depois disse.

___ Preciso ir, minha hora de folga acabou.

___ Tudo bem, mais me diga pelo menos o seu nome.

___ Nome, tenho vários, mais pode me chamar de Tânathos, é o meu preferido.

___Tânathos, que bonito, eu sou Alice.

___ Adeus Alice.

E desapareceu rapidamente entre as fileiras de livros.

Minhas amigas apareceram logo em seguida desesperadas pelo meu sumiço.

___Por que você sumiu? ___ Mel perguntou.

___ Encontrei um conhecido.

___ E cadê ele?

___ Teve que voltar ao trabalho.

___ A ta, vamos embora logo, que meu já está nos esperando.

___ Xiii, nem consegui terminar meu trabalho.

___ Bem feito.

3.VISITA

No dia seguinte entreguei meu trabalho incompleto e mal feito, bem típico de quem estava com a cabeça em qualquer lugar menos em aulas de geografia. Pelo menos eu não acreditava mais que ele era um assassino, afinal o cara era alérgico, quem é que pode prever esse tipo de coisa. E eu agora tinha um nome, não era mais apenas um rosto inexpressivo, tinha uma personalidade, uma identidade, vi o quanto saber um nome parecia mudar minhas perspectivas sobre uma pessoa, já não era um desconhecido.

Tânathos era um nome bonito, eu achava diferente mais bonito, poderia até ser colocado em um filho, não, isso seria demais, mais se um dia eu tivesse um gato ou cão talvez colocasse o nome dele de Tânathos.

Mas a nossa breve conversa de ontem não me deu muitas pistas além do nome, imaginei que tivesse um trabalho fixo já que estava preocupado com o horário, deveria trabalhar ali perto da biblioteca, já que matava o almoço aí, e por ultimo deveria ser muito inteligente, por que qual o tipo de pessoa passa o horário de almoço em uma biblioteca?

Eu devia era esquecer essa historia toda e me concentrar na minha própria vida, talvez eu nunca mais o encontre, e ficar remoendo historias.

À noite, assiste a um filme com minha família, era de espionagem, daqueles que no ano seguinte passaria na programação da tarde, toda investigação partiu de um nome que o espião quase morrendo sibilou para seu empregado, lá pelas tantas do filme tive um estalo e uma lâmpada quase se acendeu sobre a minha cabeça. Aquele não poderia ser um nome comum, tinha que ser então uma pista, uma pista da pessoa que ele era. Lembrei-me que minha tia Vê possuía um livro com milhares de significados de nomes pessoas, talvez tivesse esse nome lá, pensei em ligar e perguntar mais já passava das onze da noite, eu teria que explicar muitas coisas para ela se ligasse aquela hora então resolvi fazer uma visitinha a tia Vê no sábado seguinte, ela iria ficar feliz e eu iria resolver minhas duvidas.

Visitar a tia Vê talvez fosse uma das coisas mais legais que eu fazia, nem precisava de pretextos para isso, a mulher simplesmente me adorava, tia Vê era uma solteirona do seus trinta e todos anos, era alegre, extravagante e comunicativa, adorava ver os sobrinhos e fazer bolo de chocolate, ela morava em um apartamento a algumas quadras do nosso, era o único lugar mais ao centro que meus pais deixavam eu ir sozinha. A paixão por tia Vê era recíproca, não passaria nem uma semana sem ouvir pelo menos sua voz ao telefone. Conta-se que quando eu tinha por volta de quatro anos, fugi de casa para a casa da tia Vê, minha mãe quase ficou doida, o incrível é que eu cheguei lá, ninguém sabe explicar como, e essa lembrança de infância eu deletei, mais eu cheguei lá.

Ela já me esperava com um bolo de chocolate assando, o cheiro era ótimo e invadia todo o pequeno apartamento, tivemos um longo abraço.

___Que bom ver você minha bonequinha.

Seu abraço de urso já era quase sufocante, falei meio gemido.

___eu também fico muito feliz em ver a senhora.

Daí ela conseguiu me soltar.

Ela estava trabalhando em seu eterno projeto pessoal de arrumar o apartamento, ficaria meio estanho eu ir direto ao assunto? Acho que sim, então comecei a ajudá-la na faxina enquanto o bolo assava. Ela pediu para que eu limpasse a estante de livros, que pedido providencial imaginei, eu não precisaria explicar nada. Peguei o pano e comecei pela prateleira superior, fui tirando o pó de todos os clássicos da literatura brasileira, minha tia tinha uma paixão incontida por livros, lia compulsivamente, comprava livros todo mês como se fosse arroz e feijão, imaginei uma vez que isso fosse mal de gente solteira, afinal isso deveria criar muito tempo livre e muito espaço na cabeça para armazenar informações. Finalmente cheguei à prateleira dos dicionários, ela tinha uns quinze diferentes, o dicionários de nomes era subdividido em gênero, fui direto para a letra T, Tarso, Tercio, Tito, Túlio, revisei os com a letra T de novo e nada, o nome dele não estava num dicionário que prometia ter mais de um milhão de verbetes, aonde que eu ia procurar agora? Minha tia me surpreendeu procurando o nome pela terceira vez.

___Procurando alguma coisa?

Falei a verdade.

___ Só o nome de um amigo. Mas não encontrei.

___ Hummm, Talvez não seja um nome próprio.

___ Não entendi?

___ Nomes de pessoas são substantivos próprios, mais algumas pessoas tem nomes que não são próprios ou é fusão de outros nomes por isso você não vai encontrar em um dicionário de nomes, porque não dá uma olhada num dicionário normal, caso você não encontre, daí eu sugiro que você pesquise na internet.

Ela pegou um dicionário enorme de capa azul e me deu.

___Seu amigo deve ter um nome mesmo estranho heim.

E saiu para olhar o bolo no forno.

Voltei a minha busca no dicionário, se não era um nome próprio possivelmente era mesmo uma pista, me lembrei que ele havia dito que possuía vários nomes, será que vinha de família tradicional? Lembrei da professora de historia contar que Dom Pedro tinha catorze nomes, eu acho. Nova decepção, não encontrei.

___ E ai __ berrou minha tia da cozinha. ___ encontrou?

___ Não.

___Então depois que terminarmos a faxina, te levo até uma lan hause, vai ser bom, vou aproveitar para ler meus e-mail’s que estão atrasados.

___ Obrigada tia.

Minha tia pegou o bolo e desenformou em um refratário branco, jogou calda de chocolate em cima, e colocou na sala na mesa de centro, acho que nunca havia visto um bolo tão bonito, tudo ali parecia perfeito, o bolo, a tia, eu. Realmente naquele pequeno momento eu me senti feliz de ser quem eu sou. Ela cortou uma fatia e me ofereceu depois cortou outra fatia pra ela e ficamos ali comendo sentadas no tapete.

___ E então, Alice, como vão às coisas?

___ Vão bem ... eu acho.

___ Me refiro a como as coisas ficaram depois do incidente do restaurante, sua mãe me ligou e eu fiquei meio preocupada.

Fiquei meio segundo tentando entender aquela conversa, afinal, eu estava bem. Não estava? Não havia falado mais em terceira pessoa na mesa ou qualquer coisa desse tipo.

___ Eu estou bem, porque ela acha que eu não estaria.

___ Não sei exatamente, sabe como é a Vanessa, cismada, ela acha que ter visto uma pessoa morrer no seu aniversário vai alterar o seu futuro, eu acho que dá uma boa historia, mais ela acha que é um sinal ou coisa desse tipo.

Naquele momento pensei em deixar essa historia de investigação para trás e seguir com minha vidinha, afinal e se minha mãe, de uma forma bem absurda, estivesse certa.

___ Bem mudando de assunto ___ prosseguiu minha tia ___ como vão as coisas na escola? Já conheceu algum garotinho interessante, lembre-se que me prometeu que me contaria quando desse o seu primeiro beijo.

Correi.

___ Tia Vê!!! Mais que pergunta, eu só tenho 13 anos!!!

Ela deu uma risada gostosa.

___ Mais é nessa idade que as coisas começam a se desencortinar e o teatro da vida começa meu amor.

___ Tudo bem, não vou quebrar a promessa que lhe fiz, se bem que eu tinha uns seis anos, e qualquer coisa que a gente fala nessa idade deveria ser esquecida.

___ Garotinha você já esta começando a falar igual a uma velha....acho melhor a gente ir se não pode ficar tarde, e eu ainda vou te acompanhar até em casa.

Senti-me aliviada por aquela conversa ter acabado, ela pegou a bolsa, as chaves do apartamento e descemos.

4. DESCOBERTAS

A lan house ficava numa comercial a poucos metros de sua casa, já havia estado lá antes, mais agora tinha um novo dono e eles mudaram a decoração, a loja tinha uma porta de vidro, dentro uns vinte computadores organizados aos pares em cabines que permitiam o mínimo de privacidade, o ambiente tinha uma iluminação a meia luz, e alguns pôsteres na parede, o ar-condicionado ficava na potencia máxima, dando a sensação de que tínhamos atravessado para o circulo polar ártico. Minha tia entregou o cartão de sócia para a atendente, uma moça magra dos cabelos cacheados e longos, meio ruiva com sardinhas. Acho que se chamava Margareth, lembro do seu nome por que a gente ainda se cruzaria outras vezes. Minha tia pagou por tempo ilimitado, isso significava que ela na verdade não tinha pressa de me levar em casa, acho que sua pressa de embarcar no mundo virtual era maior. Ela pagou um computador só pra mim.

Sentei na cadeira estofada, e mexi no mouse, fui primeiro olhar meus e-mail’s, fiquei pensando na preocupação da minha mãe e se eu realmente deveria continuar mexendo com aquela historia do restaurante, alguns minutos se passaram, dos e-mail’s eu já estava em uma página de jogos, desatenta, minha cabeça se voltava para o motivo real de ter entrado na internet, será que dá uma olhadinha seria um crime? Seria um caminho sem volta? Informação, era só isso que eu precisava, isso não significava que eu faria alguma coisa errada, ou se quer se eu voltaria a vê-lo. Então me decidi, abri uma página de busca e digitei seu nome, da maneira que eu achava que se escrevia na caixa de texto, rapidamente o programa me forneceu milhões de alternativas de sites e subpáginas, comecei a ter uma leve taquicardia ao ler a introdução de uma __ Tânatos, deus grego da morte. Abri esse site com um certo receio, o texto era curto, fácil de entender até para uma criança, Tânatos era a personificação da morte, dizia o texto, filho de Nyx , a noite e de Érabo, a escuridão, irmão de Hipnos, o sono, Tânatos pelo que entendi era uma espécie de sócio de Hades, enquanto ele buscava as almas Hades as mantinha em Tártaros, o texto também dizia que ela habitava os Campos Elisios, era uma enxurrada de informações na tela que eu ia abrindo novas páginas, e páginas, duas pequenas historias contavam que ele não era lá muito querido por ninguém, e que já o haviam tentado prender.

Fiquei um tempinho sem mexer em nada tentando absorver aquilo tudo, ele não tinha matado o homem mais estava me dizendo que seu nome era Morte, imaginei que fosse um engano, voltei à página de busca, mais era aquilo tudo mesmo. O cara era ou não era assassino? Voltei a pagina de pesquisa e fiquei olhando as fotos que retratavam ele, em uma, foto de uma escultura grega, ele aparecia com olhos tristes e asas de anjo. Uma onda invadiu minha mente e meu corpo, meu coração parecia que ia saltar pela boca, afinal ele tinha me dado uma pista que explicava tudo, explicava porque as outras pessoas não tinham visto, porque a biblioteca estava cheirando a flor, lembrei-me que quando nos encontramos lá ele disse que eu não fazia idéia do que ele era, do que ao invés de quem. Respirei fundo para tentar diminuir minha tensão e meus batimentos cardíacos, e por fim não pudi mais esconder-me da constatação obvia, absurda talvez, mais obvia e clara, eu tinha conhecido o anjo da morte.

Como é que eu tinha sobrevivido aquilo? Como é que alguém vê o anjo da morte na sua frente e nem se dá conta disso? Meus dias devem estar contados e ele já está no meu encalço, imaginei. De certa forma a morte não me metia medo, não a minha própria morte, mais agora parecia tudo tão real e tão próximo. Estiquei o pescoço e olhei para os lados imaginando que ele poderia estar por perto. Fiquei feliz de não ter visto, que loucura, eu repetia para mim mesma.

Minha tia me chamou e fomos embora, no caminho até em casa eu não consegui dizer uma só palavra, quando minha tia perguntou se estava tudo bem eu apenas assenti com a cabeça.

Meus dias estavam contados.