– A casa abandonada
 

O casarão rosa, quatorze janelas envidraçadas com molduras brancas dando para duas ruas diferentes agora está abandonado. Já não estão ali, espalhados por quatro salões e dez quartos, os móveis incrustados de raiz de laranjeira, fabricados especialmente para a família, no Brasil e na França. Já não estão ali os espelhos bizotados sobrepondo-se a extensas bancadas de mármore italiano, nem as louças do século XIX. As duas últimas moradoras se foram, uma delas transportada de forma violenta para a eternidade, quando setembro chegou. Agora ali só habitam os fantasmas daqueles que ali viveram e conviveram por mais de cento e cinqüenta anos e o eco das grandes festas que foram dadas nos primeiros tempos.

Desde que o conheci, assim que cheguei a Lavras, o célebre casarão da Dona Zica já estava ligado indissoluvelmente ao nome de uma de suas filhas, Odaléa, que ali viveu até ser covardemente assassinada em um assalto torpe ocorrido em uma cálida manhã de setembro. Aos noventa e um anos não aparentados, lúcida, controlava os negócios imobiliários da família, formado por casas, casarões, estabelecimentos comerciais e lotes, todos agrupados em uma mesma região, a região onde eu mesma vivo ainda.

Conta a lenda que Odaléa, para impedir a venda das propriedades da família, após a morte do pai, viajou com a mãe para fora do país tendo vivido em Lisboa, Londres, Paris e Roma. Ela amava aquelas casas e não queria vê-las destruídas pelo progresso.
 

De família importante no meio político e social do país teve como parentes: Francisco Sales, que foi Governador de Minas e Ministro de Estado no Governo de Hermes da Fonseca, os Negrão de Lima e Sara Kubitscheck. Ninguém que a conheceu nos últimos tempos desconfiava desses detalhes, nem mesmo tinham conhecimento sobre a sua cultura. Viajou por muitos países, em todos os continentes. Poliglota, leu muito e a leitura ainda era sua companheira diária, assim como o piano. A revista O Cruzeiro, já extinta, em uma de suas capas, trouxe a sua foto junto a Otacílio Negrão de Lima e Perón em uma recepção na Casa Rosada. Conheceu Evita Perón no Jockey Club do Rio de Janeiro, que sua família freqüentava.

Ali, no Casarão Rosa, viviam nos últimos tempos as duas sobreviventes dessa família tradicional em Lavras, Odaléa e uma irmã, inválida. Em certa manhã, com a colaboração da empregada doméstica que lhes facilitou a entrada, dois bandidos entraram pelos fundos e subjugaram Odaléa, imobilizando-a e calando-a: ainda desconhecendo o resultado da perícia, supõe-se que sua morte foi em decorrência de um ataque cardíaco. Após colocá-la fora de combate eles invadiram um quarto onde ela não permitia que ninguém entrasse e onde se supunha houvesse muito dinheiro – quando os ladrões foram subjugados, encontraram em seus bolsos a surpreendente quantia de dois mil reais.

Odaléa já era uma figura mitológica dentro da cidade. Histórias sobre ela corriam de boca em boca, principalmente seus conflitos com os locatórios de seus imóveis. O povo a acusava de inimiga do progresso e a responsabilizava pela mudança geográfica do centro comercial da cidade. Muitas de suas propriedades estão vazias, algumas até semi-abandonadas, já que o custo para restaurá-las é bastante alto. Uma incógnita se espalha pela cidade: o que vai acontecer com essas propriedades, que novo rumo será dado à história de Lavras? Uma interrogação brota no meu coração: onde estarão os milhares e milhares de livros que ela leu em sua extensa e intensa vida?

 
 
(alguns dados desse texto foram obtidos através de matéria publicada no Lavras News, semanário lavrense)
 

(Texto de número dezoito da série: De trás pra frente ou de frente para trás, tanto faz, faça como lhe apraz)