Rio, 2016
Saio de casa. Movimentação diferente na rua. Não era Dia de São Cosme & São Damião. Nem Domingo de Carnaval. Apenas um domingo de São Francisco de Assis normal, padroeiro dos animais. Lembro de uma grande escritora, minha amiga: “... uma galinha carijó. Parecia que ela sabia tudinho. Só faltava falar”. E pensar na vida que elas levam no cativeiro das grandes indústrias até serem sacrificadas. Para que fiquemos alimentados.
Vejo um vizinho, que se dirige apressado ao início da rua.
- Mataram um cara lá em cima na esquina. O senhor soube de alguma coisa?
- Não, tô saindo agora!
Pessoas sobem, outras descem a rua. Agitação. Apesar do tempo encoberto e do friozinho relativo, parece que todos resolveram sair da toca.
Chego lá em cima. Um carro preto cercado por crianças e adultos. Dois camburões da PM estacionados por perto. Os vidros do carro fechados. A película de insul-film tornando o veículo definitivamente preto. Aproximo-me e noto três perfurações de tiro: duas na lateral ao lado do motorista e uma na frente. Por um dos buracos laterais, bem maior que os outros dois, vejo o corpo de uma mulher de joelhos, com o rosto apoiado no encosto do banco do carona. O casaco de pele de onça tornando-a mais gorda do que devia ser. Presumo que seja de meia-idade. A brancura da pele dos braços indicando o andamento irreversível do processo de rigidez cadavérica. Está morta.
A tese mais verossímil, segundo as pessoas por ali: tinha ido com o marido fechar a aquisição de uma casa em Cotengui, localidade perto de Jamelão, onde resido, em Ricomar, município de um presumível Estado do Rio. Já tinham visitado o imóvel objeto da compra que iriam realizar. Possivelmente souberam do encontro do casal com o vendedor e estavam esperando-os. A mulher, diante do assalto, devia ter reagido, colocando o veículo em movimentação, sendo em conseqüência alvejada. Deve ter andando um pouco, mas foi retirada do volante pelo marido para que fosse socorrida mais rapidamente. O marido decidiu parar quando chegaram a Jamelão ao constatar que sua esposa já estava morta. Foi removido às pressas para um hospital com a pressão atmosférica a 26.
Alguém arriscou a suposição de que a polícia internacional pudesse entrar no circuito, já que presumivelmente tratavam-se de dois americanos. Fica-se com a impressão de que o consciente coletivo admite como pouco provável a possibilidade de a polícia resolver crimes desse tipo. Que tendem a cair no esquecimento, até por ter ocorrido em uma localidade afastada do centro da cidade e com características ainda rurais. E por não ter sido, por isso mesmo, objeto do interesse da mídia.
Abatido com a cena, como todos os vizinhos e pessoas da localidade, sabendo que apesar de tudo a vida tem de continuar,
penso na poesia que daria,
poesia triste
poesia real
poesia transversa
poesia reversa
poesia desigual
poesia diversa
da que queremos
ou, na melhor das hipóteses,
mais uma modalidade olímpica
a que estamos habituados.
Também, qual a importância que teria um caso como esse, acontecendo provavelmente em muitos outros pontos do Rio neste domingo, diante da parefernália de maquetes que vimos de manhã na TV? Todas de muito bom gosto e concepção, sobre os equipamentos a serem construídos até 2016 para a celebração no Rio dos Jogos Olímpicos. Seria mais ou menos a mesma que teria uma galinha carijó que, embora faltasse apenas falar pra ser igual a gente, estivesse em alguma granja esperando pra ser sacrificada.
Rio, 05/10/2009