BEM A PROPÓSITO

BEM A PROPÓSITO

Doutor, cientificamente, como denominar um sujeito esclerosado? Demente, respondeu ele.

Acreditem, foi um grande susto! Tentei disfarçar, mas, com certeza, o meu olhar não conseguiu o intento - “os olhos são o espelho da alma”, já dizia o ... alguém inventou a expressão, não importa quem, a assertiva foi feliz.

Este preâmbulo é necessário para fazer do leitor meu parceiro diante de um problema urbano da era moderna: o estresse. Houve um tempo, há duas décadas, em que os médicos diagnosticavam como quadro-alérgico-de-fundo-emocional toda e qualquer manifestação patológica que não encontrasse respaldo nos compêndios e experiências médicas. Hoje, o quadro é de estresse.

Já em minha casa, consulto o Aurélio e lá encontro: “ Esclerosado (Part. de esclerosar) Adj. 1. Que se esclerosou. 2. Pop. Diz-se da pessoa que esclerosou. 3. V. “de miolo mole” . Meu susto procede ou não? Você há de concordar comigo: consultar o dicionário e conhecer o significado da palavra é um ato mecânico, mas ouvir do médico o significado científico, curto e grosso “ ... esclerose é demência”, é puro masoquismo. Em verdade, quando um paciente consulta o médico sobre assunto tão pouco compreensível ao leigo, espera uma explicação científica, mas não muito direta. Objetividade tem hora! Sua expectativa é grande, mas sua capacidade de administrar informações pouco agradáveis é pequena. Embora fazendo uma auto-análise, sendo até muito severo consigo mesmo, foge à sua competência diagnosticar seu estado como demência ou coisa do gênero, você está apenas um pouco esquecido, com uma parcela mínima de esquizofrenia, outro tanto de megalomania, outro tanto de delírio persecutório, e mais um tanto de neurose urbana, e mais um tanto de ....ufa!

Essa minha preocupação procede. Há sociedade é impiedosa com a terceira idade. Um jovem esquecer coisas ou palavras, em meio a uma conversa, parece normal, “... ele está com a cabeça na lua, está com a curva hormonal no pico, é inseguro, não tem experiência de vida, está sempre com pressa, vocabulário pobre, não tem hábito da leitura” e por aí se vai amenizando os fatos. Mas, alguém com mais de 50 anos esquecer, já fica sob suspeita. O pobre é execrado, colocado na berlinda pelos colegas de trabalho, amigos e, principalmente, pelos perversos filhos, que, às suas costas, fazem os comentários já conhecidos “...tá na menopausa, isto é falta de marido, é vecchiaia bruta, tá na hora de pegar o terço”, entre outras pérolas. Na maioria das vezes, esses lapsos ocorrem por puro estresse, causados por pressões as mais variadas, ou ainda, o que é mais comum, a seletividade natural dos assuntos por ordem de importância - embora não possamos descartar a senilidade, que não tem um tempo definido e generalizado.

Entretanto, o recurso inconsciente da seletividade corre o risco de se tornar uso constante. Um tênue fio, quase imperceptível, liga a realidade à fantasia. Se a realidade for penosa, rompemos esse tênue fio.

Esse enfoque realidade/fantasia me leva a algumas reflexões sobre o filme “D. Juan De Marco”, com Johnny Deep, e Marlom Brando e Fay Dunaway, que propiciou me entrar no assunto demência, afora minha ida ao geriatra, é claro, pretexto para a produção desta crônica.

Lembram-se? O Don Juan em crise de identidade, usando capa, chapéu de três pontas e tudo o mais que compõe o personagem – criação de Johnny Deep -, é internado num sanatório e conseqüentemente cai no divã de um psiquiatra – personagem de Marlon Brando como psiquiatra. Tinha este diante de si um maníaco-depressivo, suicida em potencial. Cada nova sessão, conduzida de forma profissional, revelava um paciente incomum. Seus delírios megalômanos, e a relação disso tudo - o óbvio, na teoria de Freud - com sua mãe, são relatados com detalhes fantásticos e mágicos. Um universo tecido de malhas e nós especiais que o separam da realidade. Esse mundo fascinante de conquistas cavalheirescas de lindas mulheres sempre muito apaixonadas por ele - dormira com mais de 1.000 mulheres em poucos anos -, e as mais inusitadas formas de fazer amor, o leva a lugares paradisíacos, onde não há lugar para a tristeza. Este distanciamento da realidade e das maldades do mundo passa a seduzir o psiquiatra. A cada sessão o seu interesse por esse Don Juan, que alucina somente o prazer, aumenta.

Numa das crises depressivas em que o paciente tenta o suicídio, de forma não menos cavalheiresca, o psiquiatra o salva, utilizando, como recurso de indução, a sua própria fantasia - a morte o tiraria do mundo maravilhoso de aventuras e de lindas mulheres. Não poderia abandoná-las, elas precisavam dele vivo... Os argumentos do psiquiatra o demovem do intento, naquele momento.

A essa altura, o psiquiatra, já inteiramente fascinado pelas paixões do paciente e pelos delírios de felicidade, repensa a sua própria vida. Questiona-se sobre a realidade sem os matizes da fantasia. Deu-se conta de que a sua era uma vida chata, insípida demais. O cotidiano familiar e o mesmismo a estavam consumindo. Decidiu mudá-la!

À noite, em sua casa, deitado em sua formidável cama, olhou sua, ainda, bela mulher lendo ao lado. Era linda, mas fenecia como uma flor em campo estéril. Mas ele a redescobriu e voltou a fazer-lhe a corte. Passou a mão em seus ombros, sentiu seu corpo, o perfume de seus cabelos, afastou-os e beijou-lhe a nuca e... Ela, a princípio, estranhou, mas entrou no jogo de sedução do marido. Era o que ela precisava para reflorir. Apenas um toque quente e um olhar sedutor em forma de convite, sentir as mãos do marido em sua pele, ouvi-lo dizer que ainda a amava. A antiga chama reavivou-se. Voltaram a fazer algumas loucuras que a censura interior não lhes permitia, como fazer amor de forma não convencional e dormir abraçados. Na manhã seguinte, os dois, após um desjejum diferenciado, saíram a correr de mãos dadas, a dançar e se beijar na praia!!!

A história toda é um deleite! O psiquiatra viajou no delírio do paciente. Era muito mais atraente...

É isso aí! Um pouco de fantasia se faz necessária quando tudo parece que já era, principalmente quando passamos dos 60 anos, o jovem que existe em nós precisa se fazer presente, aflorar, mexer com nossas fantasias. Sentir-se desejado, amado e correspondido faz da vida um sonho realizado. Cada tempo tem seu encanto. Se sentirmos a fuga deste encantamento pela vida e pelo amor, vamos massagear vigorosamente o nosso ego, elevar a alto-estima.

Nada de frases antigas, gestual ultrapassado, linguagem arcaica, roupas fora de moda, aparência descuidada, cabelos sem brilhos e pele sem viço. Leiam o “Voo da Borboleta” e sejam felizes!

Sejamos idosos, mas não velhos!

A realidade, às vezes, é muito assustadora. Ter consciência de que se pode estar atravessando o tênue fio que separa a lucidez da insanidade é aterrador!!!

Esturato/09

Esturato
Enviado por Esturato em 02/10/2009
Código do texto: T1844674
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