Viajando por ali e aqui
Onde tudo começou (1)
Leitora apaixonada dos livros de Júlio Verne, lidos desde a mais tenra infância, posso dizer que estreei na escritura ficcional influenciada por ele. Quando completei o terceiro ano primário meus pais me enviaram, em outubro do ano seguinte, para fazer as provas finais do quarto ano em um colégio interno. No local onde morávamos, as duas escolas existentes funcionavam com classe única, todos os anos em uma sala só, mas não podiam conferir o diploma do curso primário. Assim, para passar ao nível seguinte, que era o ginásio, eu deveria fazer o quarto ano, mesmo que só prestando as provas finais, em um colégio fora da cidade. Foi assim que fui parar em Andrelândia, na classe de Irmã Aline.
As lembranças distantes não garantem a veracidade dos fatos, mas são as que ficaram em minha memória até hoje e assim lido com elas. Talvez não tenha sido na primeira aula, mas é assim que penso que foi. O que não deixa nenhuma dúvida é que eu era uma menina vinda da roça para pegar o bonde na última parada: bonde esse onde todos os lugares já estavam marcados e todos se conheciam. E eu ali, perdida, sem saber nem mesmo como se portar. Foi então que a professora disse, ou deve ter dito: Abram seus cadernos de composição e escrevam sobre uma viagem que tenham feito, seja ela verdadeira ou não. Como eu teria apenas dois meses de aulas meu caderno era fino: Uma composição por semana, vinte folhas serão suficientes, devem ter informado aos meus pais. Porque vinte folhas tinha o meu caderno, não poderia ter mais, já que o abri e com minha letra ainda mal formada fui escrevendo, escrevendo, até que ele se acabou. A aula havia terminado e os alunos dispensados, mas a freirinha continuou ali comigo, até que me levantei e entreguei o caderno cheio: uma viagem fictícia pela Europa que eu conhecia só pela leitura de livros de viagem. E mais, em companhia de Santos Dumont. Através das sombras ainda sinto o vôo ao redor da Torre Eiffel com ele e seu chapéu esquisito me mostrando Paris. Na aula seguinte a minha redação foi lida em sala de aula pela Irmãzinha que predisse que um dia provavelmente eu seria uma escritora. É certo que a predição não se realizou em função do que se considera ser um escritor: alguém que ganha a vida escrevendo. Nunca ganhei nada mais sério que um anel de brilhantes e uns trocadinhos que não fizeram a menor diferença. Mas a partir desse fato eu descobri que a palavra seria minha arma de defesa e de ataque, companheira inseparável e sempre respeitada.
Apesar do meu grande amor pelos livros de viagem nunca fui uma grande viajante. Comecei tarde a ter gosto pelas descobertas in loco e minhas viagens nunca duraram muito tempo. Agora, estive três semanas rodando por uma parte da Europa, em uma viagem que chamo de desdobrada: durante esse tempo conheci pessoas, paisagens, modos de viver e principalmente a mim mesma mais profundamente, na mais longa viagem interior contínua que propiciei a minha mente. Sei que terei uma infinidade de assuntos para tratar daqui para frente, mas não me cobrarei nem sequência nem prontidão. Os assuntos irão surgindo quando se sentirem prontos para sair e do modo que quiserem sair.
Durante a viagem pude observar algo muito interessante: a necessidade de fotografar, muito maior do que a necessidade de ver e sentir. Com o advento das fotos digitais, a existência de pen-drivers e a possibilidade de descarregar as fotos em computadores, as pessoas levaram para casa milhares de fotos. Como se fosse necessários provar aos outros e até a si mesmo: estive aqui. Também fotografei almejando captar a beleza de um determinado instante, mas minhas atuações no ramo foram bem pobres. Minhas verdadeiras fotos serão meus textos porque sei que muito do que eu escrever daqui por diante estarão impregnados de minhas sensações e meus pensamentos.
Mas uma coisa confirmou-se para mim, mais uma vez: tão bom quanto ir é voltar, sentir a sensação de verdadeiro pertencimento. Saber que o mundo existe lá fora, ao meu alcance, mas que existe também um lugar para onde eu posso voltar quando quiser.
Lavras, manhã de sábado, 26 de setembro de 2009.