Crônica da indignação
Mesmo durante a pressa matutina e gelada em que me encontrava nesse dia, eu conseguia arranjar tempo para desacelerar o passo e examinar todos os elementos daquela minha rua favorita: a rua Ensaio sobre a Cegueira. Sacos de lixo abertos e espalhados pela rua; casas aparentemente abandonadas, mas com chamas bruxuelantes em suas paredes encardidas; outras com pequenos sinais de habitação, e de enorme esquecimento; carros enferrujados esperando por motoristas que nunca mais voltariam; árvores tristes, sempre úmidas; uma carroça aqui ou ali de um andarilho; um barraco erguido por plástico, madeira, um sofá azul e coberto por uma lona branca; e uma loja de não-sei-o-quê aberta desde muito cedo. Essa é a rua pela qual mais gosto de passar.
Ora, no final dessa rua - quando ela se abre para uma outra - há uma casa de uma única janela, um prédio bonito, um carro sempre bem cuidado e uma casa subterrânea. Foi bem entre o prédio bonito e a casa subterrânea que vi o crime, a heresia e a crueldade. O assassinato.Jazia entre as duas edificações, no piche manchado, um livro. Rasgado, desfolhado, sujo. Uma calamidade. Crime. Quem teria sido o insensível estudante que estivera acima de tal brutalidade? Fazer isso com um livro, ainda mais didático? Tive vontade de recolher as páginas espalhadas, mas se fizesse isso encontraria o portão da escola fechado.
Não digo que fiquei abalado, mas admito ter ficado indignado e com vontade de dar uns bons beliscões nesse estudante medonho. Qualquer dia o encontro, será fácil reconhcê-lo: assassinos de livros tem a culpa esculpida na fronte. Ele que me aguarde.