DESCOBERTAS

 

Descobertas

Há ocasiões em que lembranças me vêm com tal clareza à mente que me emocionam. As sensações de alegria e as de pesar, as músicas, os perfumes, as flores, os cheiros das frutas sazonadas, assim como rever modelos de roupas mais antigas e algumas pessoas em fotos da família. Esses são momentos que me remetem ao passado, um passado rico de emoções.

Essas impressões estão arraigadas em mim. A redescoberta de cada uma das impressões é como algo a que eu não tinha direito, mas que me era dado de presente – tenho-as como resultado de confinamento em internato. Cada momento foi vivido como se outro eu não viria a ter; desfrutado, espremido entre os dedos e sugado com avidez, como a última fruta da estação.

O tempo passou por mim, mas não deixei de registrar cada instante importante. Retive em meu espírito, todos os momentos importantes da minha e da vida de meus parentes próximos. Convivi e registrei como fato importante cada momento de meus amigos. Participei de seus desejos e realizações, dos sucessos e alguns insucessos. Não deixei escapar nada. Cada acontecimento foi marcado por emoções diferenciadas no tempo e no espaço.

Um desses momentos me proporcionou uma experiência fantástica: caiu-me às mãos “Os Tesouros da Juventude”, um mundo maravilhoso contido nas paginas dessa enciclopédia universal. O primeiro volume, ilustrado e em cores, abriu-me as portas do conhecimento. Mergulhei nesse mundo bem maior do que a princípio imaginara e ainda me encontro mergulhada. A partir desse momento, não mais precisei pedir licença para viver. Tudo me foi possível. Tudo me era permitido.

Até então, as letras não passavam de símbolos, resultado de bolinhas e palitinhos de formas diversas, desenhados, a duras penas, no caderno de caligrafia, debaixo da curvatura do corpo em torno do caderno, a ponta da língua entre os dentes, ponta do lápis molhado em saliva. Enfim, eis que venço, aos poucos, o desafio: um feixe de sinais e significados organiza-se e explodem em significados. Os mistérios começam a ser desvendados! Como uma caixa de segredos da qual salta, cheio de guizos, risonho e colorido, um arlequim.

Escrever é isso! É exteriorizar, resgatar tesouros, revelar mistérios escondidos no subconsciente. É transformar insípidas flores, adormecidas nas profundezas da alma, em buquês perfumados. É, também, soltar os demônios confinados dentro de si, libertar-se dos recalques do passado, criar fantasias. É levar o leitor a um mundo diferente do seu, a um mundo, talvez, por ele desconhecido, a um mundo fantástico. É conhecer, é saber, é querer mostrar aos outros o seu conhecimento de mundo, de experiência e de emoções.

O ato de escrever não o deixa só. Sua imaginação, seus sentimentos e seus conhecimentos partilham com você o ato de escrever. Mas, é também um ato solitário, para os solitários! Um amigo, também escritor – Léo Gilson -, disse-me em certa ocasião: escrever custou-me a perda de uns poucos amigos e dois casamentos.

Já a leitura é uma caixa de Pandora. Quanto mais se lê mais surpresas são reveladas. Mesmo um texto já lido possui um novo encanto a cada releitura. Escrita e leitura estão em simbiose perfeita.

Em razão de tudo que eu disse a vocês é que minha alma sofre muito quando vejo livros jogados no lixo. A pessoa que os joga no lixo é uma alma grosseira, penso eu. Uma alma que se recusou a ser transportada a um infinito de possibilidades. Perdeu a oportunidade de conhecer a estória do outro, de outros povos, de outras vivências, de outras possibilidades de vida, de outros sonhos, de outras realizações. O livro é algo poderoso para os poderosos e fortalecedor para os não tanto. O livro amplia os horizontes da alma humana. É um infinito de conhecimento. Estamos mais perto de Deus, quando lemos um livro – não importa o tema, ou o conteúdo. Se é que somos semelhantes a Deus, então o que escrevemos é o resultado deste Eu superior, mesmo sendo uma literatura menor. Se ao lermos algo que não venha de encontro às nossas convicções, então aí estará uma oportunidade para revermos nossos conceitos de certo e errado. Uma oportunidade para mudanças ou afirmação das nossas convicções. Jamais uma perda de tempo.

Este preâmbulo se fez necessário para relatar um fato que me chocou bastante e razão desta crônica.

Hoje de manhã encontrei uma pilha, ou melhor, uma coleção da Literatura Brasileira ao pé da lixeira no corredor do meu prédio. Só o fato de estar no chão, meu coração verteu lágrimas de desalento. Foi como se minha alma impulsionasse com mais força sangue em forma de lágrimas para dentro das veias. Peguei-os com o maior cuidado, como se estivesse pegando um bebê recém nascido. Limpei-os um a um com carinho maternal, a pedir desculpas pelo desprezo aos autores, aos editores, ao conhecimento, à vivência dos personagens, suas dores e alegrias, a história do seu tempo, e levei-os para uma estante em meu quarto.

Como já não possuo mais espaço para tantos livros, estou pensando em doar alguns que já reli – alguns eu já reli quatro vezes e, quando as capas já estão puídas, levo-os para reencadernar. Os livros didáticos podem ser doados a bibliotecas escolares e os de ficção podemos trocá-los por outros, em algum sebo.

Agora, estes tesouros estão bem próximos de mim. Farão companhia a outras duas coleções já lidas e que possuo há muito tempo: Literatura Universal e Coleção do Eça de Queirós. A coleção salva por mim do lixo fará companhia também aos meus livros de contista modernos, autores brasileiros, poetas brasileiros contemporâneos, e poemas de Florbela Espanca, Emily Dickinson e Maiakovisk.

Esturato/94

Esturato
Enviado por Esturato em 19/09/2009
Código do texto: T1820098
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